Crônica publicada em 2/3/1997
Uma das características mais frequentes no comportamento humano é a hipocrisia. Muita gente é exatamente o que não deixa transparecer. É clássico que por trás de quase todo o moralista existe um cafajeste. E não raro o mais modesto homem de um grupo esconde dentro de si um refinado narcisista e megalomaníaco.
Essas pessoas são as mais sofridas. Porque residem nos seus peitos demônios que rugem e que elas mantêm aprisionados e amordaçados, escondidos sob o esmalte do fingimento. Passam a vida inteira sem se darem a conhecer, não deixam escapar uma só frase ou gesto que acusem a sua verdadeira personalidade e vão até o túmulo ocultando a sua legitimidade ideológica.
Na política, essa distorção de conduta é quase que invariável. Já se disse que o político é um ator, nada mais verdadeiro. Há políticos que desempenham durante toda a sua vida um papel completamente desligado de sua idéia e objetivo.
Os mais potencialmente sanguinários fascistas que conheci na política eram notáveis homens de esquerda. Dos seus lábios e do seu currículo só brotavam palavras e pensamentos que exaltavam a democracia, o respeito aos direitos individuais, o protesto veemente contra as práticas totalitárias da direita e da ditadura instalada. Se algum dia viessem a assumir o poder, as noites de seu país ficariam povoadas das prisões, da tortura, dos assassinatos, talvez até do genocídio.
Usavam a liberdade como mero e falso estandarte para suas intenções sinistras de vilipêndio e arrasamento do Estado de Direito. Eram intrinsecamente mais verdugos que seus pretensos ou reais carrascos. Condenavam e lutavam contra o que idealizavam se de súditos se tornassem soberanos. E em muitas ocasiões, na atividade política rotineira, deixavam transparecer, em ímpetos incontroláveis, amostras dessa sua tendência despótica e cruel.
Eram verdadeiramente de esquerda mas falsamente democratas os mais torpes e implacáveis políticos que conheci. Superavam ou se igualavam aos piores exemplares da direita, demonstrando que maldade e arbitrariedade não têm cor nem lado político. Hitler e Stalin podiam divergir visceralmente em torno a conteúdos ideológicos, mas em essência eram duas feras insaciáveis do sangue humano para a realização de suas doentias ambições.
Por trás de uma mulher recatada à luz do dia, pode estar uma incendiada messalina na escuridão da noite e na indevassável intimidade. O marido que nunca trai, esse pode ser o mais promíscuo dos machos nos labirintos de uma cidade. O mais honesto dos profissionais pode estar esperando o momento propício para dar o golpe do século. Um terno libera-se num instante para desvelar-se como um assassino. Um permanentemente leal explode de repente no mais repelente traidor.
Porque é do cerne biológico dos humanos fabricar uma aparência indigna e inversa da substância. Porque fingir e mentir são marcas indeléveis do homem e nunca vão desaparecer do seu caráter. Porque o homem é o único animal que pensa, tendo a faculdade de camuflar esse privilégio. Os outros animais não pensam, daí que todos seus gestos são sinceros.
É muito importante o que o homem faz, mas eu daria um doce para saber o que ele pensa. E entre o que faz e pensa quase sempre tropeça num abismo.
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