Eu tenho um amigo que é a favor da pena de morte, a favor do aborto, a favor da cota racial, a favor dos carroceiros, a favor da liberação das drogas e a favor do desarmamento. Não sei como é que ele consegue ter opinião firme sobre esses seis assuntos. Qualquer pessoa normal terá dúvidas sobre esses impasses dialéticos. O meu amigo não, ele discorre sobre todos, manifestando sua opinião corajosa e radical.
Como não pode haver nada mais triste do que uma roda de amigos sem assunto, pior talvez só um jardim sem flores, o meu amigo é a alegria da roda. Sempre que ele está presente, se estabelecem discussões acaloradas, a roda se incendeia, todos manifestam suas opiniões, desconfio até que meu amigo se posiciona assim tão claramente sobre essas questões para manter acesa a roda de amigos.
Agora vem a notícia de que a governadora Yeda Crusius é a favor do aborto. Mais propriamente, é a favor da descriminalização do aborto, ou seja, de que não se processe criminalmente quem faz aborto. É a favor do aborto, em suma. Complicada e corajosa opinião da governadora, que se soma à do ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Se já é muito difícil para os jornalistas de opinião se inclinarem a favor ou contra teses polêmicas, imaginem para autoridades e para políticos que dependem de voto. É quase impossível. Por isso, considero corajosas as opiniões da governadora e do ministro a favor do aborto. Os seis assuntos são cabeludos, comportam opiniões que pendem para cada um dos dois lados: pena de morte, aborto, cotas raciais, carroceiros, liberação das drogas e desarmamento. Você, que me está lendo neste instante, já pensou como se posiciona sobre esses assuntos? Eu vou lhe dizer com toda a sinceridade: me divido em todos. Sou a favor da pena de morte, mas Pablo, que vive dentro de mim e é uma espécie de meu alter ego, é contra. Pablo me adverte todos os dias de que, se os crimes hediondos têm de ser punidos com a eliminação de seus autores irregeneráveis, no entanto nada nos garante que o Brasil possua equipamentos penais equilibrados e suficientes para aplicar assim um castigo tão radical, correndo o risco concreto de matar inocentes.
Sou contra os carroceiros atrapalhando o trânsito nas ruas. Mas Pablo, que é todo coração, me chama a um canto e me penaliza com a sorte de milhares de pessoas que vivem dos ganhos do milhar de carroceiros que há em Porto Alegre e seriam definitivamente excluídos de sua atividade lucrativa e atirados à mais negra miséria, caso fossem proibidas as carroças na cidade. Então, como no caso da pena de morte, Pablo me faz parar para pensar.
Sou também a favor da despenalização do aborto, mas dentro de mim se rebela Pablo, o sensitivo, contra o assassínio de um pobre ser que não pediu para nascer e está lá abrigado no ventre materno, teoricamente protegido contra as agressões exteriores pela própria mãe, que no entanto é quem comanda a ação que vai vê-lo tangido pelo ferro assassino, extirpado das entranhas maternas. Pablo, veemente, grita que, a partir do momento em que aloja em seu corpo um feto, uma mãe não é mais dona de seu corpo. Pertence ao hóspede daquele corpo o direito inalienável de viver. E fico horas e horas atormentado com o debate que travo com Pablo todos os dias. Em última e apressada análise, em todas essas polêmicas, na liberação das drogas, nas cotas raciais e nas outras aqui abordadas, a luta que se trava é entre a razão e o sentimento, entre o cérebro e o coração. Já escrevi que o cérebro dispara o revólver, o coração dispara a lágrima. A razão nos impele para um lado, o coração nos puxa para o outro. Na pena de morte, no aborto e nesses outros temas encaroçados, quase sempre desentendem-se nosso cérebro e nosso coração. E é por isso que ou não temos opinião sobre os temas citados, ou não temos coragem de dar nossa opinião. Quando não temos coragem, é de vergonha do nosso coração.
Crônica publicada em 02/07/2007