Inspiro-me no ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, que viu passar o ano recolhido à mesma cela em que esteve recluso durante quase 30 anos como preso do regime de seu país. Mandela voltou ao cárcere e foi lá dormir junto com muitos companheiros de cativeiro (os que ainda não morreram depois de libertados e os que não tombaram quando estavam aprisionados) para se aprofundarem numa reflexão sobre aquele período despedaçado de suas vidas.
Não deixa de ser um exercício de humildade retornar mentalmente a um passado que, embora honroso, traz recordações dolorosas.
Pois eu faço algo parecido nesta passagem de século. Durante a virada do ano e nos primeiros dias de janeiro, realizo várias experiências passadas, uma espécie de balanço espiritual da minha vida.
Por exemplo, vou oferecer-me para ser entregador de roupas de lavanderia por uma tarde, o que fiz por um ano na infância, no primeiro emprego que tive em minha vida.
Só não vou ser baleiro de cinema, o que fui nos antigos cinemas Castelo e Avenida, porque não existem mais baleiros de cinema. Mas vou pedir que me façam alguns pastéis e vou vendê-los na frente de um quartel, como aconteceu comigo quando tinha uns 10 anos de idade.
E desde já me ofereço para vender durante uma manhã inteira bolachas e balas em qualquer quitanda, a exemplo do que durante três anos eu pratiquei num grupo de feira livre de Porto Alegre, em todos os sete dias da semana. Armo inclusive barracas de manhã cedinho, erguendo a tenda. E vou alegrar novamente a freguesia como eu era exímio, enquanto ia pesando e empacotando a mercadoria.
E na primeira vez que for a Florianópolis, serei ajudante de um caminhoneiro, outra façanha que realizei nos primórdios da minha juventude.
Falo sério, será uma interessantíssima regressão, uma forma de recordar vidas passadas dentro da própria vida, um método intrigante de eu comparar o que fui e o que sou, o que por certo me levará a deixar de queixar-me dos incômodos de hoje, eles com certeza foram muito mais intensos no passado, quando eu me julgava inquestionavelmente feliz. Pois tenho certeza de que esse retorno no túnel do tempo me ajudará a me considerar feliz agora. Creio que é essa sensação que Nelson Mandela procura. E vai achar. E acabará por reencontrar uma serenidade perdida.
Apanho de novo um barco no lago da Redenção, finjo que vou comer um bauru no Matheus, fico meia madrugada batendo papo num banco da Praça da Alfândega, passo de novo trêmulo de emoção diante da casa do Partenon que ainda resiste na pintura empalidecida, onde morava a primeira e impossível namorada do ardente e perturbador sonho de adolescência, aquela com quem nunca troquei uma só palavra, mas a que mais amei e amarei sempre na distância, entre todas as outras que me despedaçaram depois pela convivência. A vida para nós todos se resume no esplendor que deixamos de ser pelo que nos fugiu, em troca da tristeza que por isso acabamos sendo com quem nos encontramos.
Vou dar um jeito de ir a Tapes, rebrindar-me da visão cismada e reflexiva da Lagoa dos Patos, dar um mergulho do trapiche e arranjar uma forma de acordar na manhã inesquecivelmente perfumada de campo num galpão repleto de arreios, o espanto do guri de cidade que se deslumbrava com a primeira e deliciosamente chocante paisagem bucólica avistada.
E hei de achar um jeito de pescar lambaris numa sanga de água corrente, os pés dentro d'água, depois deitar à sombra de uma figueira e ouvir a sinfonia dos cardeais e dos anus, entremeada do grasnar dos gansos e do balido das ovelhas.
E ainda vou passar pela Rua Freitas e Castro, aqui pertinho do jornal, que era a mesma Rua Cabo Rocha do intenso meretrício, hei de entrar num daqueles becos de casario de madeira que parece nunca vão ser tombados e tenho a certeza de que vou deparar com o barraco onde pela primeira vez fiz sexo em troca de quinze cruzeiros, sórdida estreia no amor, mas que me pareceu tão reveladora e cheia de promessas.
E assim, neste balanço de agruras e venturas, me convencerei de que faria tudo novamente igual se me fosse dado recomeçar, esta é a verdadeira consciência: a de que valeu a pena ter vivido. Porque a vida nada mais é do que o curso inevitável e escalonado do destino, impossível de ser contornado.
Crônica publicada em 02/01/00