Às vezes, me pergunto como adquiri este gosto pela música popular brasileira. Eu gosto de choro, de samba, de serenata, de dor de cotovelo. E não é difícil ver a origem dessa minha tendência e dessa marca inapagável no meu gosto musical: como sempre, foi na infância.
Eu nasci no auge da música brasileira propagada pelo rádio. O rádio era a grande diversão do brasileiro. Lembro-me de que, por volta dos seis anos de idade, só meu pai tinha um rádio e o colocava na cabeceira da cama. Ele era inacessível para nós, os filhos.
Quando meu pai não estava em casa, nós saltávamos para o seu quarto. Mas, quando ele estava, o exercício de ouvir rádio era penoso, ficávamos pelo lado de fora do quarto a furtar da beira da porta as audições dos programas musicais e das novelas.
Talvez eu exagere, mas já disse que conheço 2 mil letras de músicas. Conheço as antigas, do tempo em que o país inteiro cantava Noel Rosa, Ary Barroso, Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues e outros tantos grandes compositores.
De refilão, também porque as rádios argentinas entravam rachando nos nossos receptores pela noite, adquirimos gosto pelo tango, por isso fazem tanto sucesso ainda aqui entre nós os conjuntos argentinos que nos visitam, entre os velhos, é claro.
A música era difundida pelo rádio e pelo cinema. Então os nossos ídolos eram o Jorge Goulart, o Blecaute, a Dircinha Batista, a Emilinha Borba, a Libertad Lamarque, a Sarita Montiel e a María Antonieta Pons. Quem tiver menos de 50 anos não sabe de quem estou falando.
Ir escutar rádio na casa dos outros meninos era coisa diária. Decorar as letras de músicas do Rouxinol, uma das publicações mais vendidas naquele tempo, era uma rotina.
Eu aprendi a ler e fiquei obcecado pela leitura decorando as letras das músicas e passando os olhos por uma interminável série de revistas em quadrinhos.
Meus heróis eram o Capitão Marvel, a Nioka, Capitão América, Mandrake, Tocha Humana e Centelha, Batman, Príncipe Submarino, o Sombra, o Espírito. Eu aprendi a ler com milhares dessas revistas, que eu trocava com meus amigos de infância.
Não havia nada mais saboroso do que ir para casa à tardinha com uma pilha imensa de quadrinhos, devorando-os durante três ou quatro horas.
É por isso que eu gosto tanto de ler. Ninguém foge, mesmo que imperceptivelmente, da infância. Nós somos exatamente o que nos plasmou a nossa infância.
Esta pretensão de cantar, por exemplo, de onde me vem?
Da perseguição quase insana que fazia dos 10 aos 13 anos aos conjuntos musicais, que se chamavam de "regionais", em todos os pontos do Partenon.
Chegava ao cúmulo de me oferecer para carregar os instrumentos dos músicos para as festas de aniversário. E ia me embarafustando no meio deles. Um dia faltou o cara que tocava o surdo. E eu desempenhei, lamentavelmente, mas desempenhei.
Outro dia, carreguei o violão e o cavaquinho deles até um baile aqui perto da Lomba do Cemitério. Tinha 14 anos.
Na hora de começar o baile, faltava o cantor. O Homero, dono do conjunto, olhou pra mim e perguntou se eu encarava.
Foi a primeira vez que enfrentei um microfone, saí lascando um samba de grande sucesso naquela época: "Vagabundo que na minha cara der/ tem que fazer testamento e se despedir da mulher/ Se tiver filho, deixe uma recordação/ cara que mamãe beijou/ vagabundo nenhum põe a mão".
Frustração: o máximo que aquele menino cantor atingiria foi um dueto, 40 anos depois, com Julio Iglesias no palco armado dentro do Beira-Rio.
Crônica publicada em 21/11/95