Otto Lara Resende, figura pública e escritor célebre em sua época, é hoje quase ignorado. As novas gerações não têm a mais vaga ideia de quem possa ter sido – um exemplo notável de como o tempo pode ser cruel com celebridades de certo feitio. Curiosamente, Otto sobrevive não pelos seus escritos, mas como personagem folclórico de um dos seus amigos: Nelson Rodrigues – este, sim, até hoje lembrado, lido e citado.
Com 13, 14 anos, eu já gostava de ler jornal. Lia inclusive os artigos do Nelson e do Otto em O Globo. Os do Otto não me tocavam. Faltava-lhes vivacidade e vibração. As crônicas do Nelson eram mais turbulentas e interessantes. Ele desancava sem dó os ídolos da esquerda, entre eles Godard, aquele cineasta francês. Eu nunca ia ao cinema e não tinha noção da Nouvelle Vague, mas achava Godard o fim.
O Otto era casado com uma prima-irmã da minha mãe e, por isso, cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Devo dizer, leitor: ele era impressionante. Foi o rei do bate-papo e um inigualável frasista e contador de casos. As performances dele eram sensacionais e famosíssimas em toda a cidade do Rio de Janeiro. Certa vez, conta o Nelson, o Otto compareceu a um velório. Cumprimentou a viúva e os familiares do morto "comme il faut", mas, de repente, não se conteve e soltou uma piada. Até o defunto riu. O Nelson costumava dizer que o Estado brasileiro deveria pagar um taquígrafo para ir atrás do Otto, anotando o que ele dizia, as pérolas, as críticas certeiras, as frases cintilantes, os paradoxos surpreendentes, tudo que ele mesmo nunca chegava a botar no papel. Eu, ainda menino, também notava, perplexo, o contraste entre o Otto verbal e sonoro, ao vivo e a cores, e o Otto escrito e publicado, bolorento e insípido. Era como se ele, genial frasista, insistisse em vestir casaca e envergar polainas antes de sentar para escrever.
Décadas depois, fui apresentado ao Armando Nogueira, que conheceu bem tanto o Nelson como o Otto. Falamos sobretudo do Nelson, mas a certa altura da conversa comentei a dissonância entre a pessoa física e a pessoa literária do Otto. O Armando concordou e contou que o próprio Nelson dizia que, para escrever bem, o Otto teria que, primeiro, ser "currado por três crioulões no Aterro do Flamengo".
O Otto era provavelmente um pouco almofadinha, levava uma vida privilegiada, gostava de um conforto, de aninhar-se em empregos e posições de destaque. Não podia arriscar, portanto. Tinha que contemporizar, silenciar, fazer concessões. Já o Nelson não fugia de polêmicas. Ao contrário, gostava de cultivá-las, não tinha medo de ser desagradável, de fustigar as idiotices triunfantes.
Nietzsche dizia que o grande homem tem que ser contra o seu tempo. Para alcançar a imortalidade, ele não pode ser um participante pacífico e acomodado da sua época e dos preconceitos da sua época. E, realmente, sem a coragem – que talvez seja a virtude primordial –, o brilho, a criatividade, a inteligência caem no vazio, não têm sobrevida. Não por acaso, foi Nelson e não Otto que ficou para sempre. Nelson, contestado e até odiado em seu tempo, entrou para a História. Otto sobrevive, na melhor das hipóteses, como personagem do amigo, na ilustre companhia do Sobrenatural de Almeida, do Palhares (aquele que não respeitava nem as cunhadas), da Cabra Vadia e da Grã-Fina das Narinas de Cadáver.
O Armando Nogueira me relatou, na mesma ocasião, um episódio emblemático. Um dia, o Nelson e o Otto estavam caminhando pela Avenida Atlântica. O Otto disse: "Nelson, você está atacando demais as esquerdas!". (Na época, leitor, as esquerdas estavam na moda e intimidavam todo mundo.)O Nelson ouviu a advertência do amigo e indagou: "Você acha realmente que eu ataco demais as esquerdas?". O Otto resolveu ser mais enfático: "Qualquer dia você leva um tiro!". O Nelson espantou-se: "Corro mesmo o risco de levar tiro?". O amigo confirmou, sem pestanejar. O Nelson ficou pensativo um instante e então perguntou: "Se eu morrer, você escreve a meu respeito?". O Otto prometeu que sim, claro.
E o Nelson: "Mas exagera, viu, exagera!".
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