Ouça a coluna na voz de Paulo Germano:
No Evangelho de Marcos, uma passagem espetacular é quando Jesus cura um doente num sábado. Os fariseus, sempre tentando sabotá-lo, perguntam se ele acha mesmo correto fazer aquilo – já que o sábado, em nome de Deus, deve servir somente ao descanso. A resposta de Jesus é uma revolução: "O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado".
Quer dizer: a lei deve existir para servir às pessoas, não para subjugá-las. As instituições existem para nos fazer crescer, para nos fazer felizes, livres, autônomos. Se a instituição não ajuda, bem, não é o homem que deve mudar, é ela. Essa é a grande ruptura que Jesus promove em relação ao Antigo Testamento.
Quase dois milênios depois, ciente de que vinha fazendo tudo errado, a Igreja Católica – a "esposa de Cristo" – resolve se redimir com o Concílio Vaticano II. Já na solenidade de abertura, o papa João XXIII sublinha o intuito inédito da assembleia que se estenderia de 1962 a 1965:
"A Igreja sempre se opôs a erros, muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor as necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações".
Não é bonito? Ao contrário dos concílios anteriores, mais preocupados em elencar pecados e dogmas morais, desta vez a Igreja prefere a clemência em vez do castigo, o acolhimento em vez da repulsa. Porque – de novo – a instituição existe para o bem do homem, não para fazê-lo sofrer.
Essa nova diretriz é um golpe violento no clericalismo – que é a interferência do clero, dos padres, do sacerdócio na vida social ou política dos fiéis. No clericalismo, a palavra final é sempre do padre (ou do pastor): ele diz o que é certo, o que é errado, o que pode, o que não pode. Era como se portava meu professor de catequese – o velho atravessava a aula listando pecados –, mas não é como se porta o papa Francisco, que tem criticado o clericalismo publicamente.
Francisco, como o Concílio Vaticano II, entende que as pessoas precisam decidir muita coisa por conta própria. O nome disso é "autonomia das consciências". Ou seja: eu me acerto com Deus, eu sei o que Ele quer de mim. E, se alguém disser, por exemplo, que Deus me proíbe de curar um doente no sábado, tudo bem, até respeito, mas minha consciência diz que não serei punido por isso e ponto final.
Não basta terem proteção para exercer sua "liberdade religiosa"; eles querem nenhuma proteção para quem faz o que eles reprovam.
Nesta sexta-feira (28), o Brasil vive seu primeiro Dia do Orgulho LGBT+ com a homofobia criminalizada. Embora o STF tenha deixado claro que qualquer pessoa, dentro ou fora da igreja, está liberada para dizer que a homossexualidade é pecado, a bancada evangélica segue furibunda com a decisão. Há padres católicos indignados também.
Em resumo, não basta terem proteção para exercer sua "liberdade religiosa"; eles querem nenhuma proteção para quem faz o que eles reprovam. No Evangelho de Lucas, falando em proteção, Jesus conta uma historinha: na descida de Jerusalém para Jericó, um homem havia sido espancado, despido e quase morto por ladrões. Passou por ele um sacerdote, depois passou outro, ambos viram o moribundo atirado no chão e nem deram bola.
Até que um samaritano – os samaritanos eram um povo, digamos, não muito querido pelos judeus – sentiu pena do homem, atou-lhe as feridas, levou-o até a cidade e pagou seu tratamento. Jesus pergunta, ao final da parábola, em qual dos três devemos nos inspirar. Nos sacerdotes, tão religiosos, ou no samaritano, tão discriminado?
A autonomia para decidir é sua.