Eu aqui, embora alguns me chamem de comunista, o que é uma boa piada, ainda sonho com o dia em que uma corrente verdadeiramente liberal se instalará no país. Até agora, não vi nenhuma. Aliás, até agora, só quebrei a cara.
O nascimento de qualquer partidinho ou movimento liberal sempre me injeta certo ânimo, mas, lá pelas tantas, um dos líderes do grupo fatalmente repete aquele mantra maldito:
– Sou liberal na economia e conservador nos costumes.
Chega a me dar coceira. O último a definir-se assim foi o candidato do Partido Novo à Presidência da República – que também é fundador e líder maior da legenda –, João Amoêdo. Em entrevista ao Roda Viva, na segunda-feira, Amoêdo recorreu à "liberdade do indivíduo" para defender o porte de armas. Mas ignorou a liberdade do indivíduo ao rejeitar a descriminalização das drogas.
Não estou dizendo que Amoêdo está errado, não quero entrar nesse mérito, cada um cada um, o que estou dizendo é que Amoêdo, hoje, é o principal representante desse recente fenômeno brasileiro: o liberalismo pela metade. São liberais quando convém; quando não convém, são conservadores. Não entendo qual é o problema de se definirem apenas como conservadores.
Porque a doutrina conservadora, desde Edmund Burke, sempre encarou o liberalismo econômico como um valor. Portanto, se alguém é liberal na economia, mas conservador no resto, essa pessoa é o quê? Conservadora, acabou. E, com toda a sinceridade, não tenho nada contra o pensamento conservador – que é muito diferente do pensamento reacionário, e eu inclusive já escrevi uma coluna sobre isso –, mas um liberal é diferente: um liberal não pode escolher quais liberdades vai defender.
Para o liberal, a defesa da liberdade econômica e da liberdade individual é uma só. Porque uma sociedade só pode compreender e introjetar por inteiro os conceitos de liberdade – seja no mercado, seja na esfera íntima – se eles estiverem presentes em todas as instâncias da vida. O casamento gay, por exemplo. Em outra entrevista, desta vez ao El País, João Amoêdo disse o seguinte:
– A questão da união homoafetiva, o Novo é totalmente favorável. Isso vai na linha do que falamos sobre as pessoas serem livres. Mas não gosto de fazer nada específico (em termos de políticas públicas, leis), porque você começa a segmentar a nossa sociedade. E tudo o que a gente deve evitar, no meu entendimento, é a segmentação da sociedade.
A sociedade só pode introjetar por inteiro os conceitos de liberdade se eles incidirem sobre todas as esferas da vida
Não entendi nada. Ele é favorável ao amor entre homossexuais, mas, ao mesmo tempo, não quer legislações que garantam os mesmos direitos para todos porque isso vai "segmentar a sociedade". Que coisa, eu achava que era o contrário: se todos são iguais perante a lei, aí é que a sociedade se desfragmenta. Aliás, um casal gay que puder realmente se casar – e esse é o xis da questão – também vai exercer o liberalismo na economia. Porque, vejamos:
Qualquer teórico do liberalismo defende tanto a propriedade privada quanto a liberdade de associação – ou seja, não pode o Estado impedir duas pessoas de serem sócias. Se a nossa primeira propriedade privada é o próprio corpo e se a associação mais popular do planeta é o casamento, impedir o matrimônio entre dois gays é impedir a liberdade também no campo econômico.
Por isso, para o liberal, repito, a sociedade só pode introjetar por inteiro os conceitos de liberdade se eles incidirem sobre todas as esferas. Se você é a favor do livre comércio, por que seria contra o comércio de drogas?
É verdade, do álcool à cocaína, droga nenhuma faz bem à sociedade, mas usá-las ou não sempre será uma escolha individual. Uma sociedade consciente entenderá a importância de enfraquecer qualquer droga, como o cigarro já foi enfraquecido – e só se enfraqueceu porque é uma droga legal, porque foi combatido e tratado como problema de saúde, não como justificativa para uma guerra que mata mais do que as próprias drogas.
Claro, você pode discordar de mim, entender que estou há 12 parágrafos enfileirando besteiras, não tem problema, pode inclusive achar que João Amoêdo é um bom candidato à Presidência. Talvez ele seja, mesmo: um bom candidato conservador.