Esse papo de que não existe coitadinho na política, ora, existe um coitadinho, sim, e direi agora o nome do maior incompreendido das últimas décadas, um pobre coitado que atravessa eleições debaixo de críticas injustas amparadas na ignorância e no lugar-comum. Eis o seu nome:
Quociente eleitoral.
Querem acabar com ele. Essa reforma política que o Congresso discute prevê uma aberração só existente em quatro países: Kuwait, Afeganistão, Vanuatu e Ilhas Pitcairn – os dois primeiros, vamos combinar, não são lá grandes exemplos de democracia, e os dois últimos, bem, Vanuatu tem uma população menor que a de Gravataí, enquanto Ilhas Pitcairn tem quatro vezes menos gente que a Redação de onde escrevo este texto agora, ou seja, 56 habitantes.
A tal aberração, batizada de distritão, extingue o quociente eleitoral para instituir um sistema que, à primeira vista, parece simpático. Estados e municípios elegeriam seus deputados e vereadores da maneira mais óbvia possível: entre todos os candidatos, os que recebessem mais votos estariam eleitos. Simples.
Hoje, você sabe, é mais complicadinho: primeiro, somam-se os votos de todos os candidatos de um mesmo partido ou coligação. Depois, para calcular o número de cadeiras a que esse grupo tem direito, é preciso dividir o total de votos pelo quociente eleitoral.
Outras crônicas de Paulo Germano:
Beijar um homem na boca
O prazer de se irritar com uma idiotice qualquer
Por que ninguém mais bate panela
De fato, o sistema tem suas distorções. Eventualmente, um candidato como Tiririca supera sozinho o quociente eleitoral e elege um, dois, três parlamentares na carona. Só que acabar com o quociente eleitoral por causa disso é como resolver uma infestação de cupins tacando fogo na casa. Bastaria criar uma cláusula específica para corrigir essa falha, mas em geral o quociente eleitoral é bom, é vital, é imprescindível para garantir ao parlamento uma diversidade que reproduza, ainda que minimamente, as saudáveis diferenças de uma sociedade plural.
Não é à toa que hoje chamamos as eleições para deputado e vereador de proporcionais – o objetivo é garantir certa proporção entre os diferentes setores da comunidade. Vou listar aqui seis perfis de candidatos. Veja o que o distritão faria com eles:
O ATIVISTA - Como suas bandeiras são muito específicas – vão do ambientalismo aos direitos de minorias –, raramente está entre os mais votados de um Estado. Conta com o apoio incansável de um nicho, mas dificilmente conseguiria se eleger sem a soma dos votos do seu partido, que garante cadeiras por meio do quociente eleitoral. O distritão, para o ativista, é uma tragédia.
O POLÍTICO DE OFÍCIO - Com três ou quatro mandatos, já tem boa estrutura e base eleitoral. Mas hoje ele pede votos na região do Estado em que é mais popular, enquanto outro candidato do seu partido se dedica à região ao lado – assim, a sigla ultrapassa o quociente e ambos se elegem. Com o distritão, o colega vira concorrente e precisa lhe tomar votos. O distritão, para ele, é razoável.
O OLIGARCA - Membro de família tradicional, às vezes proprietário de latifúndios e veículos de comunicação, já é um campeão de votos. Tem nas mãos o que há de melhor para se dar bem no distritão: dinheiro para campanha e capacidade de influenciar sozinho um batalhão de cabos eleitorais, inclusive prefeitos e vereadores. O distritão, para ele, é uma maravilha.
A CELEBRIDADE - Se o distritão for aprovado, os partidos pequenos – que não poderão mais se coligar com siglas maiores para tentar uma vaga pelo quociente eleitoral – devem lançar mão desta cartada como única chance de se manter no parlamento. Sem dinheiro para campanhas caras, a popularidade do famoso ganha força. Para a celebridade, o distritão é uma boa.
A NOVIDADE - Sem o quociente eleitoral, não vale a pena para partido nenhum lançar muitos candidatos – o negócio é se concentrar em poucos nomes, evitando que um concorrente tire votos do outro. Assim, é natural que as legendas apostem nos medalhões, nos bons de voto, fechando espaço para jovens e líderes em ascensão. O distritão, para a novidade, é péssimo.
O PASTOR - As igrejas pentecostais têm demonstrado poder de mobilização impressionante. Se orientarem seus fiéis a votar em um ou dois candidatos, a possibilidade de elegê-los em um sistema como o distritão é alta. A tendência é de que os evangélicos lancem menos candidatos, mas consigam emplacar boa parte deles. O distritão, para o pastor, é interessante.
Em resumo, descobri nas últimas semanas que amo esse pobre coitado chamado quociente eleitoral. Quem não gosta dele, por favor, que vá morar em Vanuatu.