Isso de ser liberal, nunca vi tanto. Virou moda mesmo. Você chuta uma árvore e caem oito, todos bradando as vantagens do livre mercado e do Estado mínimo. Eles se multiplicam em universidades e botecos da Cidade Baixa, criam movimentos sociais, grupos de discussão, páginas no Facebook com 1 milhão de curtidas e até partidos políticos – o Partido Novo, formado por liberais, nunca disputou uma eleição e já tem mais seguidores nas redes sociais do que o PT e o PMDB juntos.
É um fenômeno. Pela primeira vez na história do país há um movimento liderado por jovens, com forte penetração popular, promovendo uma entusiasmada defesa do que chamam de liberalismo. Prova do poder de mobilização dessa turma é que foi ela, por meio do Movimento Brasil Livre, do Vem Pra Rua e do Revoltados On Line, que organizou os protestos que culminaram no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Certo.
Só que alguns gostam do Bolsonaro.
Aí é dose.
Não há nenhum argumento razoável que possa levar um liberal a simpatizar com Bolsonaro. Tudo bem, você pode gostar do Bolsonaro, cada um cada um, mas você é um conservador, um radical de direita, talvez um intervencionista, qualquer coisa menos um liberal.
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Dia desses, perguntei a líderes do Movimento Brasil Livre e do Partido Novo o que pensavam sobre a união homoafetiva, e a resposta dos dois foi a seguinte: não é uma prioridade. Mas como não é uma prioridade? Todo teórico do liberalismo defende tanto a propriedade privada – que o socialismo rejeita – quanto a liberdade de associação. Quer dizer, não pode o Estado impedir duas pessoas de serem sócias.
Para introduzir esses conceitos básicos na economia e no mercado, como defendem liberais como eu, é fundamental que a sociedade possa compreendê-los e incorporá-los por inteiro, em qualquer esfera da vida. E a nossa primeira propriedade privada é o próprio corpo. E a associação mais popular do planeta é o casamento. Portanto, um liberal que evita defender o casamento gay vive em absoluta contradição.
Fico chateado quando vejo boa parte desse pessoal pregando um liberalismo pela metade. São liberais quando convém; quando não convém, são conservadores – ou dizem que "não é prioridade". O jovem deputado Marcel van Hattem (PP-RS), por exemplo, costuma se definir como um liberal conservador, o que, na minha cabeça, seria como alguém se rotular como um vegano carnívoro ou um tricolor colorado.
Critico esses novos liberais porque adoraria torcer por eles. Sonho com o dia em que uma corrente verdadeiramente liberal se instalará no Brasil. Porque quero um Estado menor, defendo uma série de privatizações, sou um entusiasta da livre concorrência, não engulo monopólios estatais como correios e táxis, acho uma indecência essa carga tributária, discuto os benefícios da legislação trabalhista e, claro, sei que o principal indutor da economia precisa ser o mercado, não o Estado. Assim é que se geram emprego e renda, mas, veja bem:
Programas sociais são indispensáveis.
E esses novos liberais nunca falam disso, pelo contrário, só falam em meritocracia, meritocracia e meritocracia. Verdade que o mérito é um valor importante do liberalismo: se você tiver mais talento, dedicação e empenho do que eu, é justo que a vaga na faculdade seja sua, ou que o emprego seja seu, ou que a sua riqueza cresça mais do que a minha. No socialismo, não. No socialismo, não existe mérito: não importa o quanto as pessoas se empenhem ou deixem de se empenhar, todas terão mais ou menos o mesmo salário, as mesmas posses e a mesma riqueza.
Isso se chama igualdade de resultados. Os socialistas gostam dela, já os liberais – inclusive eu – não, por entenderem que os indivíduos devem ser livres para ter aspirações diferentes. Outra coisa é a igualdade de oportunidades. E é para ela, para a igualdade de oportunidades, e não de resultados, que um liberal tem obrigação de defender programas sociais. Só assim o mérito, que ele tanto valoriza, pode ser um critério justo.
Uma disputa por vaga na faculdade, por exemplo. O mérito só é um critério justo se os concorrentes tiverem tido as mesmas condições de desenvolver esse mérito. Quer dizer: o filho de um desembargador que teve acesso às melhores escolas e nunca trabalhou na adolescência certamente teve melhores condições de desenvolver seus méritos do que o filho de uma faxineira que estudou em escola pública e trabalha como engraxate desde os 10 anos de idade.
O primeiro concorrente, como mostra a ilustração deste texto, larga com vantagem descomunal sobre o segundo. Para emparelhar essa distância, é o Estado quem deve garantir, por meio de educação e políticas públicas, que os dois tenham oportunidades iguais para iniciar a competição lado a lado. Se eles derem a largada juntos, em igualdade de condições, aí sim, é legítimo e justo que o primeiro a cruzar a linha de chegada, lá na frente, seja aquele que tiver mais talento, dedicação e empenho. Mérito puro.
O problema é que, no Brasil, os programas sociais e os direitos às liberdades individuais, como o casamento gay, acabaram associados a um projeto de esquerda – um projeto que, durante 13 anos no poder, não fez uma única reforma de fato, nem na educação, nem no sistema tributário, nem na estrutura política. Aí, claro, uma turma que odeia o PT encontrou no liberalismo um apelo charmoso, uma etiqueta menos careta do que a da antiga direita.
Parte desse grupo é liberal mesmo, embora pouco apareça. A parcela mais barulhenta, que grita na rua e dá entrevista, infelizmente não passa de uma infantaria anti-PT.