- Essa vagabunda dessa Dilma - ouvi isso de uma senhora que falava com outra na fila do súper. - Tinha que pegar essa mulher, enfiar num saco e jogar no mar!
Credo. Não acho que Dilma seja uma vagabunda, nem me parece razoável lançá-la ao oceano dentro de um saco, o que deve ser meio chato. Pensei na presidente se debatendo nas profundezas do Atlântico, com a água invadindo o saco e depois lhe invadindo o nariz e a boca, sem nenhum Mercadante para socorrê-la, e fiquei mal.
Pronto. Depois do trecho acima, alguns leitores já desejam me transformar em uma gosma de carne retorcida porque, se não acho Dilma uma vagabunda nem quero que morra afogada, certamente sou um petista safado que defende esse governo sem-vergonha. Tornou-se inviável discutir política no Brasil. Porque ninguém mais discute política - as pessoas só odeiam, só berram, só xingam. Viraram zumbis, criaturas irracionais reproduzindo comportamentos automáticos e enxergando os diferentes como presas a serem devoradas.
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Quem é contra o impeachment repete que é golpe, que é golpe, que é golpe. Ora, não tem nada de golpe: se Dilma for incapaz de arrebanhar míseros 172 deputados em um universo de 513, talvez não possa mesmo seguir governando. Já para os favoráveis ao impeachment, pouco importa se as razões para derrubá-la são incontestáveis ou se o presidente da Câmara, que conduzirá o processo, é um dos maiores bandidos do país: tem que sair porque é louca, é burra, não vou dizer vagabunda de novo.
Essa irracionalidade transbordou do Facebook, um antro de truculência desde a campanha eleitoral, e agora se manifesta na fila do súper, na conversa da firma, no churrasco da família. Só vai piorar; está piorando. Eduardo Cunha já chama Dilma de mentirosa, e o ministro Jaques Wagner diz que mentiroso é tu, seu bobo. Acabou o diálogo, acabaram os argumentos, e essa corrosiva estratégia de ataque se derrama na sociedade.
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Imagine o que veremos em seguida. Se o processo de impeachment avançar na Câmara, os movimentos contra Dilma retornarão às ruas, mas, desta vez, lado a lado com os inimigos: sindicatos, organizações do campo e grupos estudantis já arquitetam manifestações a favor do governo. Toda a irracionalidade vai para a rua, serão zumbis atrás de presas por todo lado.
Lembro daqueles áudios que se espalharam no WhatsApp após os protestos de março contra a presidente: um sargento fajuto com sotaque paulista mandava a turma estocar alimentos e manter as crianças em casa, porque uma guerra civil se aproximava. Não serei tão alarmista, mas até aquela senhora do súper pode virar um animal selvagem no meio das multidões.
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E antes que perguntem minha posição sobre o impeachment: das pedaladas fiscais à roubalheira na Petrobras, sem falar no amontoado de mentiras durante a campanha, há elementos para defendê-lo - ainda que nenhum deles esteja apoiado em um consenso jurídico. Só que a maior motivação para derrubar Dilma nunca foram esses elementos: sempre foi a vingança, liderada por uma oposição inconformada com a derrota. E eu duvido que uma sociedade avance colocando a vingança à frente da justiça. Aguardo os xingamentos.
Aliás, segundo o vodu haitiano, o zumbi é um morto que retorna à vida para se vingar de quem o arruinou.