Nunca cheguei a te bater. Mas ri, várias vezes, enquanto te batiam. Pior: estimulei que te batessem, debochei da tua cara e, agora, escrevendo sobre isso, lembro do teu desespero e sinto uma bola de culpa na garganta. Não queria mais lembrar disso. Mas lembro sempre.
Uma vez, na Kombi que nos levava do colégio para casa, eu e outros idiotas te mandamos para a cachorreira - aquele lugar desconfortável em cima do bagageiro. Percebi teu enjoo com o sacolejo lá atrás, vi teu rosto empalidecendo, a cabeça guenza sacudindo. Todos riram na hora do vômito. Alguns te deram tapas.
Passaram-se duas décadas, e o teu semblante abatido me castiga até hoje. Te procuro o tempo todo no Facebook, mas só sei teu primeiro nome, então passo horas atrás daquele alemãozinho que conheci com sete ou oito anos - eu tinha uns 12 - para pedir desculpas, para saber se os traumas se esvaíram, para perguntar se ainda tem raiva de mim.
Eu ainda tenho, reconheço. Não de ti, claro, mas de quem fez o mesmo comigo. Sofri demais no colégio. Fui esculhambado porque era gordo, depois porque usava óculos, depois porque meu futebol era um desastre. Quando tinha a tua idade, uns sete anos, olha que loucura, os maiores também me mandavam para a cachorreira da Kombi. E eu, que até hoje tenho náuseas quando o carro balança muito, passava mal e torcia para chegar logo em casa.
Fiz o mesmo contigo porque queria ser como eles, os grandes: conquistar a risada dos outros, seduzir uma plateia que aplaudisse minhas piadas, ser igualzinho àqueles que me agrediam. Aliás, não havia muito espaço para diferentes, só para iguaizinhos, no colégio onde estudávamos. Não é nenhum consolo, mas, se a gente pensa que sofreu, imagina os dois irmãos negros que passaram por lá. Foram os únicos negros que vi em 11 anos naquela escola. Não aguentaram os apelidos. Não duraram seis meses.
Além do teu semblante triste na cachorreira, o que me incomoda até hoje é que, segundo uma série de rankings de ensino, nosso colégio era o melhor da cidade. Herdeiros da classe mais alta de Porto Alegre estudavam lá - e os meus pais, que não eram tão ricos, dividiam a mensalidade com meus avós porque queriam me dar o melhor.
Agradeço a eles por isso, inclusive os admiro por isso, mas por que será que nunca, em mais de uma década de colégio, ouvi um único professor falar em cidadania, humanidade ou convivência social? Éramos bons na fórmula de Bhaskara e no complexo de Golgi, mas hoje quase nem lembro disso. Lembro de debochar de ti. Lembro de me enxovalharem em aula sem ninguém para impedir.
Tenho a impressão de que educação é um pouquinho mais do que biologia e matemática. Às vezes, é só aprender a ser gente, dizer obrigado e pedir desculpas.
Me desculpa, alemãozinho. De verdade.
*O colunista Paulo Sant'Ana, titular desta seção, encontra-se em tratamento de saúde.