Discuti com um defensor do armamento da população no Timeline de sexta-feira. Nem chegou a ser um debate, porque ele ficou brabo e ameaçou desligar o telefone se continuasse a contestá-lo. Calei-me, é claro – tenho medo de caras armados e emocionalmente instáveis.
Preferi não responder quando ele disse que ocorreram “apenas” 22 tiroteios nos Estados Unidos no ano passado, referindo-se aos protagonizados por pessoas com doenças mentais e sem motivos aparentes. Poderia ter dito que os tiroteios mais preocupantes não são esses; são os outros, com motivos bem definidos, entre os quais os aterrorizantes ataques a escolas. Esse é um problema tão grave, nos Estados Unidos, que o FBI publicou um alentado estudo a respeito, com participação dos governos estaduais, tentando entender o que está acontecendo no país.
O soco de hoje será o tiro de amanhã.
Esse tipo de violência é raro no Brasil. Não porque no Brasil não haja malucos, mas porque a maioria dos malucos do Brasil não anda armada.
Também poderia ter dito que não sou favorável ao completo desarmamento da população. Casas no fundo do campo ou em lugares afastados precisam mesmo de alguma proteção interna. Mas casas na cidade, que não são isoladas, definitivamente, não. Pelo menos não no Brasil.
Mesmo nos Estados Unidos, essa é uma medida terrivelmente nociva. Não é por acaso que crianças saíram às ruas, no meio do ano passado, para pedir mais controle de armas no país. Não é por acaso que mães e pais desesperados suplicam por uma ação do Estado sempre que podem falar – em emissoras de rádio e TV, nos jornais, nas redes sociais, nas reuniões das escolas. E, finalmente, não é por acaso que os Estados em que ocorrem menos tragédias causadas por armas de fogo são os que têm legislação mais repressiva, como Massachusetts, onde vivo, enquanto que os com mais liberdade, como os do Sul, são os que apresentam mais assassinatos, suicídios e tiroteios.
No Brasil, a flexibilização das restrições às armas seria ainda mais trágica. Por duas razões: primeiro, porque o dito “cidadão de bem” não tem condições de enfrentar bandidos dispostos a morrer, com a vantagem do elemento surpresa e acostumados com a violência. Esses bandidos não têm nada a perder. Eles não temem a polícia treinada, nem soldados do Exército. Não teriam nenhuma dificuldade em enfrentar e executar um advogado barrigudinho que acha que está protegido por guardar um 32 na gaveta da cômoda.
A segunda razão é o próprio povo brasileiro. O Brasil passa por um assustador processo de degeneração moral. Grande parte da população se torna, a cada dia, mais grosseira e mais agressiva. Deixe que essa gente tenha armas em casa e espere o resultado da próxima reunião de condomínio. Agora, quando isso acontecer, e vai acontecer, saiba quem serão as maiores vítimas: os inocentes. Sobretudo as mulheres.
O soco de hoje será o tiro de amanhã.
Para abalizar o que digo, lanço mão de números do FBI: 50% das pessoas mortas por armas de fogo nos Estados Unidos em 2017 conheciam seus algozes. Em 39% desses casos, os crimes ocorreram por discussões entre vizinhos ou amigos, ou devido a ciúmes conjugais.
Sei que os brasileiros sentem medo. Sei que têm razão em sentir medo. Sei que o poder público tem sido incapaz de resolver esses problemas e que isso é muito aflitivo, muito angustiante. De tudo isso sei. Mas, infelizmente, esse debate, que deveria ser racional, tornou-se pura paixão, como quase todos os que embalam o Brasil de hoje. Há “torcidas” para os dois lados, e elas se odeiam. Um problema, porque, como se sabe, o ódio não constrói. E é bastante perigoso. Principalmente se quem odeia anda armado.