Em uma casa invadida por assassinos, procuro esconderijo, encontro um mau abrigo: um pátio, onde fico encostada em uma parede. Meus perseguidores entram no lugar e, embora visível, não me enxergam. Para meu espanto, eles olham para mim e nada veem. Agem como se eu fosse transparente. Boa solução para sobreviver, mas meu pesadelo está na condição de invisibilidade. Acordo apavorada, ameaçada pela inexistência.
Sabe aquele hábito de dizer "uísque" quando se quer fazer rir um grupo posando para uma foto? Pois, na hora H, sugira que as pessoas digam "clitóris".
Tive esse sonho após ler a história em quadrinhos de uma autora sueca, Liv Störmquist, intitulada A Origem do Mundo: uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado. Um relato tragicômico da ignorância militante a respeito da genitália e até mesmo do corpo da mulher como um todo. No recinto da cultura e da ciência, a vulva é exatamente como no meu sonho, um elefante na sala que ninguém enxerga. Aquela que não é a "perseguida", mas sim a ignorada em sua forma e funcionamento. Esse é o caso dos salientes pequenos e grandes lábios; do clitóris, que se estende ao longo das laterais da vagina por sete a 10 centímetros, muito maior do que sua cabeça visível; dos pelos pubianos, geralmente erradicados, considerados sujos; por fim, da menstruação, vista como uma mácula. A anatomia feminina está ali, nada escondida, mas ninguém faz questão de admitir isso.
Liv conta que a popularidade da circuncisão feminina não se restringiu a um rito de povos que acusamos de bárbaros. Era prática disseminada no Ocidente até o fim do século 19. Temos documentada uma cirurgia de ablação do clitóris em uma menina de cinco anos, em 1948, nos Estados Unidos, para curá-la do hábito de masturbar-se. Em todo tipo de livro didático, manuais de educação sexual e revistas publicados no século 20 e até no 21, os genitais femininos sempre atendem pelo nome de vagina e muitas ilustrações omitem a vulva e o clitóris. A relação sexual propriamente dita é considerada restrita à penetração. Outros prazeres obtidos num encontro sexual são denominados de “preliminares”, nome pelo qual atende boa parte da erótica feminina e mesmo a masculina, que não se restringe ao pênis.
Autoras como a sueca Liv, a nossa conterrânea Chiquinha, a norte-americana Sarah Andersen, a argentina Maitena, entre tantas outras quadrinistas mulheres feministas, encaram os perigos da violência contra as mulheres e o pesadelo da invisibilidade com as armas do humor. Ele sempre foi um grande instrumento contra o totalitarismo. Nos tempos que nos esperam, vamos precisar disso.
Sugiro que o leitor faça um experimento. Sabe aquele hábito de dizer "uísque" quando se quer fazer rir um grupo posando para uma foto? Pois, na hora H, sugira que as pessoas digam "clitóris". Ao tentar, vão cair espontaneamente em uma risada envergonhada. Sempre dá boas fotos.