A decisão não tem maiores consequências práticas. A verdade é essa. O parlamento venezuelano, de maioria opositora, declarou o presidente Nicolás Maduro em "abandono de cargo", ao responsabilizá-lo pela grave crise que o país atravessa. O problema é que a Justiça, tomada pelo chavismo, determinou que o Legislativo é incompetente para destituí-lo.
Restaria o quê? Os militares?
Julio Borges, o novo presidente da Assembleia Nacional Legislativa, no seu discurso de posse falou sobre isso. Definiu a Venezuela como o “reino da oscuridade, do caos e da corrupção”, chamou as forças armadas a "cumprir a Constituição" possibilitando que o povo vá às urnas.
Só que, claro, as forças armadas estão muito longe de assumir essa bronca.
Pois bem, digamos que os militares resolvessem entrar no circuito. Aqui vão algumas características venezuelanas nesse setor:
* A política de cooptação de milícias pelo governo é sistemática. O projeto de Hugo Chávez, desde 1999, é chamado de "cívico-militar". Isso faz com que haja forças militares fidelíssimas e espalhadas em diversas lideranças.
* Neste momento 11 dos 32 ministros são oficiais das forças armadas. Percebem a força absurdamente eficaz desse dado? Pouco mais que um terço do gabinete!
* Volta e meia, o governo cede benefícios para famílias de oficiais. Não há maiores dificuldades em ceder a pedidos.
* As armas de todo tipo, incluindo algumas mais sofisticadas, são cedidas sem maiores pruridos. Sem há uma área em que o governo não economiza, é nesta.
* A Venezuela ocupa o quinto lugar nos gastos militares em toda a América Latina. Conforme o Instituto Internacional de Estocolmo para a Investigação da Paz, entre 1999 y 2015, gastou mais de 5,5 bilhões de euros em armamentos.
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Mas segue o baile. A Assembleia Nacional Legislativa, controlado pela oposição, votou a iniciativa e pediu a realização de eleições, na véspera de Maduro cumprir seu quarto ano de mandato.
- Aprovado o acordo com o qual se qualifica o abandono do cargo a Nicolás Maduro e se exige uma saída eleitoral para a crise venezuelana para que seja o povo quem se expresse através do voto - disse o presidente do parlamento.
Conforme a extensa declaração, "Maduro provocou uma crise sem precedentes na Venezuela" e está "à margem da Constituição" por provocar "devastação econômica", "ruptura da ordem constitucional" e "violentar os direitos" dos venezuelanos. Só que... antes da sessão, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), acusado pela oposição de servir ao chavismo, publicou nota para esclarecer que a Assembleia "não tem faculdade para destituir" o presidente Maduro que, acrescentou, está "no exercício de suas atribuições constitucionais".
Em uma sessão agitada, os opositores acusaram Maduro de descumprir deveres e mergulhar o país em uma crise sem precedentes, com escassez de alimentos e remédios, a inflação mais alta do mundo e criminalidade galopante.
- Este é um governo falido, por isso há abandono de cargo. Não continuem jogando lenha na fogueira - advertiu o ex-chefe do parlamento, o antichavista Henry Ramos Allup, na tribuna dos oradores.
O líder da bancada governista, Héctor Rodríguez, qualificou a iniciativa de um "ato de insensatez e irracionalidade".
- Ao satanizar as ações do presidente, reconhecem implicitamente que está governando. É mais uma ópera bufa - disse o deputado chavista Pedro Carreño.
Segundo a lei, se o parlamento declara "falta absoluta" do governante antes de que cumpra seu quarto ano de mandato, eleições serão convocadas em 30 dias. Depois desse limite, será substituído pelo vice-presidente para completar os dois anos restantes do mandato presidencial. Mas, na semana passada, Maduro nomeou vice um "chavista radical" - como o próprio se define -, Tareck el-Aissami, 42 anos, a quem pôs à frente de um "comando" contra supostos planos "golpistas" da oposição. Se for afastado, E-Aissami é o seu títere de plantão.
A oposição, ainda assim, aspira a uma antecipação das eleições gerais de 2018, embora Maduro, a quem a oposição tentou tirar do poder em 2016 com o referendo revogatório - suspenso pelo poder eleitoral - se mostra seguro de governar até o fim de seu mandato, em janeiro de 2019.
Analistas advertiram para a enorme muralha com que a oposição tem deparado incontáveis vezes: o TSJ, que há cinco meses declarou o parlamento em "desacato" e nulas todas as suas decisões por ter empossado três deputados cuja eleição foi suspensa por suposta fraude. Embora em novembro tenham se afastado voluntariamente da Assembleia, o TSJ exigia que seu desligamento fosse votado, o que foi feito nesta segunda-feira antes do debate sobre o abandono de cargo. Mas a corte ainda não suspendeu a declaração de desacato.
- Para ser efetiva (a declaração de "abandono do cargo"), deve ser acompanhada da nomeação de um TSJ que não esteja a serviço do Executivo. E se deverá ver se vem com uma estratégia de rua que busque escalar o protesto - disse à agência AFP Diego Moya-Ocampos, analista do IHS Markit Country Risk.
Para o constitucionalista Pedro Alfonso del Pino, "abandonar o cargo não é exercer mal" as funções, mas "deixar de exercer o poder" e isso não ocorre.
Em dezembro, a Assembleia declarou a "responsabilidade política" do presidente na crise, com a ideia de abrir um julgamento político. Mas essa figura não está na Constituição e, de qualquer forma, o TSJ anulou esta decisão.
O analista John Magdaleno diz que, embora mude de estilo e ofensiva, o Legislativo enfrentará em 2017 "os mesmos ou piores desafios" que em 2016:
- Sua atuação estará condicionada pela estratégia do chavismo, que é a de reduzir as competências deste parlamento.
"A estratégia já começou", disse Magdaleno.
Na sexta-feira passada, deputados governistas pediram ao TSJ para declarar ilegal a nova diretriz parlamentar, sob o argumento do desacato.
Analistas avaliam que a oposição, dividida em torno de um diálogo suspenso com o governo, deve se concentrar nas eleições de governadores e prefeitos, previstas para este ano e em conseguir o apoio popular.
Entenda o que ocorreu na noite de ontem
A Assembleia Nacional Legislativa da Venezuela declarou o abandono de cargo do presidente Nicolás Maduro. Embora prevista na Constituição, a medida será simbólica, porque a Justiça considerou a decisão ilegal.
Abandono de cargo era a última tentativa legal que tinha a oposição, que domina o Legislativo, de convocar eleições gerais em caso de saída do presidente.
A decisão foi aprovada com 106 votos a favor - todos de rivais de Maduro. Os 55 deputados da bancada governistas abandonaram o plenário.
Antes da decisão final, foi aprovada a desincorporação dos três deputados com mandatos impugnados. A posse deles era o motivo pelo qual o Judiciário havia declarado o parlamento em desacato. Não adiantou muito...
O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), chavista, considerou que o Legislativo não pode destituir o presidente. Para os magistrados, é o mesmo caso da responsabilidade política, declarada pelo Legislativo em dezembro.
A lei máxima venezuelana prevê, porém, que o presidente pode ser retirado pela declaração de abandono do cargo aprovada na Assembleia Nacional Legislativa.
O vice do Legislativo, o opositor Freddy Guevara, disse que há motivos de sobra para tirar Maduro e convocou a população a apoiar a decisão nas ruas.
A partir desta terça-feira - quando Maduro completa quatro anos na presidência -, quem assume em seu lugar em caso de deposição é o vice, hoje Tareck el- Aissami, da linha dura do chavismo e totalmente alinhado ao presidente.
Isso ocorrerá mesmo que prospere o referendo, que a oposição tentou fazer em 2016. Porém, o Conselho Nacional Eleitoral postergou os prazos da coleta de assinaturas necessárias para que a votação seja convocada.