A reportagem que este colunista fez no fim de semana, sobre a vinda de Adolf Hitler para a Patagônia depois da Segunda Guerra Mundial, provocou muuuita polêmica. Houve comentários elogiosos e algumas ponderações à teoria defendida pelo jornalista e pesquisador argentino Abel Basti. Como Basti contesta a história oficial, não me dei o trabalho de detalhar o dito suicídio de Hitler em Munique – limitei-me a recordar que essa é a versão corrente.
Houve até alguns leitores que questionaram a frase em que a matéria falava sobre os nazistas que viveram seus últimos dias na Patagônia. Ora, claro. Viveram, sim. Isso é comprovado. Acontece que alguns foram capturados para ser presos ou executados em outros locais, por questões de jurisdição.
O professor de História Waldemar Dalenogare Neto, em um ótimo texto, argumenta por que considera a teoria de Abel improcedente. Aqui, sua defesa e seus argumentos (antes, faço questão de dizer que Basti é visto como fonte importante na discussão sobre esse tão polêmico. Mas vamos ao que diz Waldemar Dalenogare Neto, que a mim, que não tenho opinião formada sobre o assunto, parecem bem interessante):
Léo, em nenhum momento uma pessoa como Abel Basti pode ser considerado um acadêmico e/ou pesquisador. Tampouco suas descobertas têm notoriedade. Suas metodologias não são claras e suas afirmações escondem-se nas fontes ditas 'confidenciais', propagando a velha história do "eu ouvi falar, corri atrás da pessoa, mas não posso dar mais detalhes". Abel Basti está na mesma categoria de literatura de ficção e história alternativa apresentada, por exemplo, no livro Fatherland (Robert Harris), que imaginava um mundo com a vitória do Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial.
O que mais me chamou a atenção na reportagem foi o fato da dita 'versão oficial' não ter um espaço amplo para defesa e desconstrução do absurdo propagado. Veja, não estamos falando de uma 'versão oficial' frágil, mas sim de um assunto debatido exaustivamente, tanto na literatura acadêmica ocidental quanto na soviética/russa, que foi a maior interessada no assunto nas décadas posteriores. Os argumentos de Basti, na verdade, sustentam uma rede de maus caráteres formados aqui na América Latina que buscam lucrar dinheiro com essa suposta aparição do Hitler. Essa roda nutre vários tipos de atividades, desde especiais em canais de História até passeios turísticos em supostos locais em que Hitler viveu.
E dou destaque para o termo aparição, que utilizei anteriormente, pois pela análise do contexto de Berlim, no final de abril de 1945, não existe a mínima possibilidade de fuga do Führerbunker.
Vou abordar alguns fatos. De antemão, cito que boa parte dessa discussão é feita com muito mais propriedade por acadêmicos como Hugh Trevor-Roper (oficial britânico encarregado da investigação para saber se Hitler estava vivo e que publicou a obra The Last Days of Hitler, em 1947), Ian Kershaw, Joachim Fest, William L. Shirer e mais recentemente pelo professor Richard J. Evans com sua magnum opus sobre o Terceiro Reich. Gostaria de salientar a relevância das pesquisas de cada um destes pesquisadores citados, que passaram milhares de horas enfrentando a pior das burocracias para colocar as mãos em arquivos e documentos secretos.
Quando qualquer pessoa fala que Hitler fugiu para a Argentina, duas são as considerações iniciais (e vou ficar só nessas, apesar da vontade de ampliar o objeto em discussão):
a) Viabilidade da fuga de Berlim;
b) Motivo da fuga de Berlim.
Na questão a, toda a bibliografia deixa claro que a última oportunidade real de fuga ocorreu no dia 22 de abril de 1945, quando o Dr. Albert Speer, então Ministro do Armamento e Produção de Guerra, ofereceu a oportunidade de um avião com escolta para Hamburgo, onde Hitler teoricamente iria continuar comandando a resistência. A negativa é registrada em várias memórias (que discutirei a seguir), e analisada no livro Por Dentro do III Reich, escrito pelo próprio Speer após seu tempo da prisão em Spandau.
Acho engraçado que as pessoas geralmente não pensam no caos de Berlim, em 1945, totalmente envolta na guerra (o vídeo https://goo.gl/gv0PxM serve para ilustrar). Retirar Hitler do Führerbunker não era simples como esses 'autores' propagam. Exigiria esforço militar ímpar, totalmente fora da realidade do período.
Em breve síntese, já em janeiro de 1945 a frente oriental estava completamente vulnerável, abrindo espaço para a convocação da Volkssturm (que nos dias finais de abril era composta apenas por meninos, inclusive condecorados por bravura pelo próprio Hitler (https://goo.gl/Qblenj) já em sua última aparição pública.
Além disso, o próprio Hitler estava com um estado de saúde extremamente debilitado e fragilizado, muito por conta das injeções com os mais diferentes tipos de drogas administradas pelo Dr. Theodor Morell - que passavam desde meta e brometo de potássio até cocaína e adrenalina (extremamente detalhados nos registros médicos de Morell, publicados em 1983). Para Basti, ele sumiu do Fuhrerbunker pela mágica.
Na questão b, existem algumas das mais bizarras contradições que já vi como historiador. Aí depende da criatividade de cada cidadão que quer um pouco de atenção. Alguns anos atrás, uma senhora propagou a ideia de que Hitler foi para o Mato Grosso e se casou com uma mulher de lá pois sempre amou o Brasil. O besteirol de Basti entra no mesmo calíbre.
Várias são as testemunhas que foram torturadas e/ou que publicaram memórias sobre os dias finais do ditador alemão: cito especialmente Albert Speer, Bernd Freytag von Loringhoven, Gerhard Boldt, Heinz Lorenz, Rochus Mischm, Theodor Morell, Walter Frentz e Willy Johannmeyer - além de Werner Haase, Erna Flegel, Helmut Kunz, Fritz Tornow e Johannes Hentschel, presos pelos soviéticos no dia 2 de maio e responsáveis pela apresentação do corpo de Hitler e de Eva Braun ao Exército Vermelho.
Acadêmicos já colocaram todas esses memórias (restringi a seleção de nomes apenas aos últimos ocupantes do Führerbunker) frente a frente para debater possíveis contradições. E elas existem, sim. Só que não no suicídio de Hitler. O grande mistério de abril de 1945 reside no motivo pelo qual Hitler ordenou a execução de Hermann Fegelein, em 28/04.
Contestar os relatos sem sequer citar os registros da arcada dentária fornecidos pelo Dr. Hugo Blaschke, que fecham com dados da autópsia soviética, ou mesmo os esforços do serviço de contra-espionagem SMERSH para localizar, registar e se desfazer do copo do ditador para tentar 'discutir a história', na verdade acabam desinformando o leitor casual, que desconhece o contexto geral. Te falo isso pelo fato de ouvir hoje, no restaurante, dois senhores idosos discutirem a matéria como verdade absoluta, muito por conta do destaque da entrevista.
Deixo claro que gosto muito das tuas reportagens, por isso tomei a liberdade de escrever este e-mail. Apesar da minha área ser o estudo da política dos Estados Unidos, a Segunda Guerra Mundial, sem dúvida, é um assunto que chama a atenção do leitor e dos alunos - por isso também dou uma atenção especial para acompanhar as publicações recentes.
Um abraço