O desespero da população venezuelana em meio ao caos do desabastecimento de 80% dos produtos básicos e da violência decorrente disso provoca as mais diversas e incríveis histórias. Na entrada de uma comunidade violenta de Caracas, por exemplo, predomina o mau cheiro do lixão Las Mayas. Perto dali fica a funerária onde Baldomero Hidalgo faz o trabalho que outras capelas de velório deixaram de fazer por medo. Baldomero prepara os funerais dos baleados, como são conhecidas as vítimas - em sua maior parte, jovens - de disputas entre bandos ou confrontos com a polícia em uma das capitais mais inseguras do mundo. Aos 32 anos, ele é um dos poucos que ainda se ocupam, em seu ofício, dos chamados "malandros". Precisa, inclusive, preparar alguns corpos e ajudar a velá-los em suas casas porque seus entes queridos também têm medo de serem mortos a tiros, por represália, em uma funerária. Dos 30 cadáveres que chega a "preparar" em um mês, 24 são de pessoas mortas por armas de fogo.
- Se os tiros são no rosto, é preciso fazer o melhor possível para reconstruí-lo. Mas há pessoas atingidas a tiros por quem que não se pode fazer nada - comenta. São, então, velados com o caixão completamente fechado.
A residência como local de velório é uma alternativa agora que ninguém quer lidar com os assassinados. Os assaltos e brigas cada vez mais frequentes durante os velórios levaram as funerárias de Caracas a fechar as portas aos baleados, segundo José Morillo, presidente da Associação Profissional da Indústria Funerária. É uma situação que inquieta mais à luz das cifras. Em 2015, houve 17.778 homicídios, segundo a promotoria (58,1 por 100.000 habitantes), mas a ONG Observatório Venezuelano da Violência (OVV) estima que, no total, 27.875 pessoas foram executadas com armas (90 a cada 100.000). A promotoria exclui de sua lista casos não tipificados como assassinatos e os de pessoas mortas em ações policiais, que a priori são investigados como resistência à autoridade. Em ambos os casos, a cifra é várias vezes superior à média mundial: 8,9 homicídios por 100.000 habitantes, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em um único fim de semana, podem chegar ao necrotério de Caracas até 40 assassinados, relata contagem publicada pela imprensa toda segunda-feira.
- A maioria das funerárias grandes não aceitam um baleado pela confusão que pode causar - afirma Baldomero, pai de um menino de um ano e que começou no ofício como auxiliar de necropsia.
Com um longo expediente de violência, a Venezuela enfrenta desde meados de 2014 uma crise econômica provocada pela queda do preço do petróleo, que aumentou a sensação de insegurança. Os policiais também são alvo frequente de delinquentes, que os matam para roubar suas armas.
Sentado no escritório da funerária onde trabalha há 10 anos, Baldomero fala com à agência de notícias France Presse enquanto um jovem passeia, nervoso pelo corredor, com a aparência de quem dormiu pouco.
Seu irmão - afirma - foi morto a tiros na noite anterior, e ele espera que o necrotério libere o corpo para velá-lo. Mas o problema, continua Baldomero, vai além. Quando o morto é um "malandro" de uma comunidade, seus amigos bloqueiam com motocicletas os acessos à funerária, atiram para o alto, bebem álcool, consomem drogas e "isso escapa do controle, porque a maioria anda armada", afirma. Se tentar impedir, Baldomero diz que pode levar um tiro por nada. Além disso, nestas situações, a "polícia brilha por sua ausência".
O encarregado da indústria funerária admite o risco de rejeitar um cadáver.
Há grupos que não se conformam e montam grandes espetáculos de briga - gerando "insegurança" para todos os que estão nas capelas, afirma Morillo.
Enquanto as funerárias grandes têm protocolos para rechaçar um cadáver, Baldomero não pode fazê-lo, apesar do risco. Certa vez chegou a ser encurralado e sequestrado pelos parentes de dois jovens mortos a tiros, um deles filho de um policial, enquanto os levava ao cemitério. Precisou dirigir o carro fúnebre até um morro, onde tinham preparado uma homenagem para um dos mortos.
- Essas homenagens incluem tiros para o alto, corridas de motos, música - diz ele. - Fazem isso porque muitos parentes não conseguem descer porque podem ser mortos.
Baldomero precisou esperar algumas horas para depois descer com o morto e levá-lo, por fim, à sepultura.
O trabalho funerário na Venezuela é "de alto risco", afirma, antes de se levantar da cadeira. No segundo andar da funerária, mais um cadáver o espera.
Colômbia só quer abrir fronteira definitivamente
Enquanto isso, a Colômbia descartou reabrir um corredor humanitário na fronteira com a Venezuela - fechada por Caracas há quase um ano - para que os venezuelanos possam comprar os produtos em faltam em seu país.
- Não vamos repetir o que foi feito nos últimos dois finais de semana. Vamos trabalhar para que haja uma abertura definitiva e no próximo final de semana não haverá passagem humanitária - disse a chanceler colombiana, María Ángela Holguín, em entrevista concedida na cidade de Cúcuta.
A chanceler destacou que os dois países trabalham para "ter uma fronteira organizada, uma fronteira legal, uma fronteira efetiva e que fique aberta de forma permanente".
- Esse é o trabalho que estamos fazendo com o governo venezuelano, e aspiramos que isto ocorra em breve - diz ela.
Conforme as autoridades colombianas, entre sábado e domingo passados, 123 mil venezuelanos cruzaram a fronteira para comprar alimentos e remédios, após uma autorização temporária de Caracas.
Uma primeira abertura temporária da fronteira foi realizada em 10 de julho, o que levou 35 mil moradores da Venezuela, assolados pelo desabastecimento em seu país, a fazer compras na Colômbia.
Holguín destacou que o governo do presidente Juan Manuel Santos está disposto a receber os venezuelanos que querem comprar na Colômbia, mas apenas permitirá o ingresso e a permanência de estrangeiros "de maneira legal".
- As pessoas que não tiverem seus papéis em dia serão expulsas - advertiu a chanceler, que nas próximas semanas se reunirá com sua colega venezuelana, Delcy Rodríguez.
O fechamento da fronteira foi decretado por Maduro em agosto de 2015, após um ataque de supostos paramilitares colombianos contra uma patrulha militar venezuelana, que deixou três feridos na cidade de San Antonio, o que também gerou tensão entre os dois governos.
Perseguições políticas e demissões
Outro problema que começa a se tornar corriqueiro na Venezuela é a perseguição política.
"Você sabe o que fez", foi o que disseram a Eva Belloso, ao notificá-la da demissão de uma entidade pública na Venezuela. A verdadeira razão, conta ela, foi ter assinado o referendo revogatório do mandato de Maduro.
Eva é um dos 1.250 funcionários estatais destituídos por apoiar a consulta promovida pela oposição, conforme o sindicato UNETE, que denunciará esses casos à Organização Internacional do Trabalho (OIT).
- Solicitamos a intervenção imediata do diretor-geral da OIT (Guy Ryder)", diz a coordenadora da União Nacional de Trabalhadores (UNETE), Marcela Máspero.
Em alusão à "discriminação no trabalho", os denunciantes buscarão junto à OIT a restituição dos funcionários.
- Passei toda a minha vida profissional no Seniat (autoridade alfandegária e tributária) - lamenta Eva, uma advogada de 51 anos, 24 deles na instituição.
- Não merecemos que depois de 20, 25, 30 anos nos mandem embora por ter exercido nossos direitos - lamenta.
História similar vive Miguel Monsalve, afastado da Corporação Elétrica Nacional (Corpoelec) após 12 anos de serviço.
- Não nos deram razões, mas quando os trabalhadores demitidos começaram a se comunicar, todos tinham um denominador comum: ter assinado o referendo revogatório - constatou.
Máspero garante que a situação se repete na Sidor e Venalum, metalúrgicas produtoras de ferro e alumínio, enquanto a organização de direitos humanos Provea alerta para a destituição de policiais.
A Venezuela tem dois milhões de funcionários públicos.
As denúncias serão anexadas a um expediente aberto contra o governo venezuelano na OIT por uma queixa apresentada na última reunião da entidade, no começo de junho, por razões alheias ao referendo revogatório.
Apoiado pelos três maiores sindicatos do país (UNETE, CTV e CGT), o recurso já dava conta de supostas violações da liberdade sindical, falta de medidas para a proteção do salário e discriminação política.
Em maio, Diosdado Cabello, número dois do chavismo, pediu a revisão "assinatura por assinatura" em busca de dirigentes - que na Venezuela são de livre remoção - que tivessem assinado o referendo.
- Se há 'escuálidos' (opositores) infiltrados e ficarem expostos, têm que ir - advertiu Cabello. Eva afirma que, ao ouvi-lo, "todas as peças se encaixam".
Diante das denúncias, o parlamento, de maioria opositora, aprovou em 30 de junho uma moção de condenação contra as demissões.
Não é a primeira vez que isso ocorre, garante a dirigente sindical Marlene Sifontes, ao lembrar que em 2004 o deputado chavista Luis Tascón, morto em 2010, publicou na internet lista com os nomes de 2,4 milhões de pessoas que assinaram a favor de um referendo contra o presidente Hugo Chávez (1999-2013). Na ocasião, houve uma onda de demissões em empresas estatais.
Desta vez, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) difundiu em sua página na internet a identidade daqueles que assinaram o pedido de referendo contra Maduro para que soubessem se seria possível avançar ao passo seguinte: autenticar sua assinatura.
Em um documento de apoio ao revogatório, três ex-ministros de Chávez - Héctor Navarro, Gustavo Márquez e Ana Elisa Osorio -, assim como o general reformado Cliver Alcalá, destacaram que as demissões são um "delito cometido ante a vista de todos, com a maior impunidade".
O governo nega as supostas represálias.
- Isto nunca ocorreu, se alguém conhece bem a administração pública (sabe que) tem um nível de proteção bem amplo, dificilmente pode ser demitido, e muito menos por uma causa política, porque aqui não se persegue - assegurou à imprensa o ministro do Trabalho, Oswaldo Vera.
No entanto, ele considerou válido debater a proposta de Cabello.
- Se eu não compartilho do critério desta empresa, como posso me empenhar - argumentou.
Mas os sindicatos insistem em que há uma campanha de intimidação.
- Corresponde às centrais sindicais cuidar da participação política de todos os trabalhadores. Quem quiser assinar, que assine. Quem não quiser, que não assine - afirmou Máspero.
O CNE anunciará em 26 de julho se a oposição conseguiu validar 200 mil assinaturas para ativar o referendo. Se for assim, terá que coletar 4 milhões de assinaturas para que a consulta seja convocada.
Chavistas aderem ao referendo revogatório
Três ex-ministros do falecido líder Hugo Chávez e um general reformado expressaram apoio ao referendo revogatório contra Maduro, como uma forma de evitar uma saída violenta para a crise venezuelana. O general reformado Cliver Alcalá e os ministros pediram que o governo não bloqueie a consulta popular impulsionada pela oposição, com a qual, porém, insistiram não ter "nada a ver". "É urgente, para evitar resultados graves, que o Estado garanta" a realização o referendo, indica um comunicado entregue ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE). A carta é assinada pelos ex-ministros Héctor Navarro (Educação), Gustavo Márquez (Comércio) e Ana Elisa Osorio (Meio Ambiente), bem como Alcalá, líderes da esquerda e acadêmicos críticos a Maduro.
Ao todo, uma dúzia de pessoas que compõem a recém-criada plataforma para a Defesa da Constituição. Alcalá era muito próximo de Chávez, a quem acompanhou em sua fracassada tentativa de golpe de 1992 contra o governo de Carlos Andrés Pérez (1989-1993).
- Nós nos auto-qualificamos como defensores da Constituição - disse ele em uma entrevista coletiva, na qual acusou publicamente Maduro de ter abandonado o legado de Chávez (1999-2013).
Por sua vez, Márquez negou que os chavistas que defendem o direito do referendo sejam traidores.
- Onde está a traição, do lado de quem defende a Constituição ou de quem quer violá-la? - questiona.
O CNE, que a oposição acusa de trabalhar para o governo, deve anunciar em 26 de julho se a oposição conseguiu validar as 200 mil assinaturas necessárias para ativar a consulta popular.