Aproveito as ocasiões em que me libero das barras de cereais para almoçar nos restaurantes em volta do trabalho. Em um deles, duas televisões, para que nenhum comensal fique privado das imagens, passam sempre a mesma programação: cenas de surfe, praias, rapazes bronzeados (algumas moças, mais raras) fazendo na vida somente o que gostam. Eles têm todos os dias uma rotina que não levo sequer nas férias. Seu único patrão é o mar, são governados pelos desafios que eles mesmos se colocaram. Arriscam-se, alguns sucumbem, emprestando adrenalina extra aos sobreviventes. Suas vidas têm como missão uma superação respeitosa dos desafios da natureza, assim como nutrir com sua realidade os que levam a vida a quilômetros do mar, a 11 meses de distância do descanso.
Piratas, descobridores de continentes, soldados, marinheiros, espiões e astronautas outrora representavam as vidas animadas, opostas aos seres monótonos que somos nós. Hoje, nossos heróis da exceção são esse tipo de aventureiros boas-vidas. Assistimos a suas proezas lendo as legendas das televisões mudas, enquanto o som ambiente está ligado em uma rádio aleatória. Compramos em lojas de surfe, que vestem gente grande e pequena bem longe da praia. Antigamente, as crianças eram trajadas de marinheiros, hoje as vestimos de surfistas. No futuro, parecerão tão cômicas quanto as infâncias dos nossos avós.
Junto a meus companheiros de bufê, egressos temporários de seus escritórios, consultórios, firmas e lojas, comemos com tempo contado para as garfadas. No almoço, a comida deveria ser leve como aquelas vidas, pois não temos tempo para a moleza pós-prandial. É o mais próximo que chegamos dos (sempre) jovens da televisão, que contam desde a areia sobre aquela onda gigante que os desafiou, por vezes mostram suas casas deliciosamente despojadas. Vivem como pescadores, só que não pescam, conhecem o mar como marinheiros, só que não navegam, enfrentam a morte como soldados, só que não ameaçam ninguém, nem meliante, nem inimigo. Eles apenas frequentam a natureza, testam nela seus limites, como o faz qualquer esportista.
São, portanto, esportistas. Porém, ninguém sonharia em passar o diminuto descanso de seu almoço olhos pendurados numa tevê que mostrasse ou relatasse os extenuantes e dolorosos treinos de um atleta. Até mesmo suas apresentações olímpicas, lindas, perfeitas, não são isentas de certa angústia. Sabemos que uma existência inteira de esforços sobre-humanos é posta em risco num intervalo de segundos, qualquer milímetro afastado da perfeição colocará tudo a perder.
Surfistas e outros tipos de esportistas da natureza, sobre cujas vidas assistimos em programas de televisão, são personagens de nossa utopia.
Sua realidade pode ser bem outra mas, para nós, os cinzentos das garfadas apressadas, são como garotos que não precisaram trocar as calças curtas pelas compridas. Sem falar no terno, com cujo tecido duro e quente jamais conviverão.
Eles desconhecem o trágico esvanecimento das férias. Menos de um mês depois, parece que realmente não aconteceram. Costumo manter comigo algumas fotos, que olho durante o ano para tentar me convencer da sua veracidade. É como olhar fotos de infância, nas quais sabemos estar retratados, porém nos escapa qualquer empatia com aquele momento.
Como a maior parte de nós não surfa, ou o fez na adolescência e foi esquecido pelas ondas, alugamos suas vidas para o exercício de uma ilusão. Há algumas pessoas que escolhemos para admirar, como uma espécie de pódio midiático, ou zoológico de ideais. Os mais populares são os milionários, que ostentam porque lhes assistimos o desperdício, e pop stars cuja vida importa mais que sua arte. Já estes esportistas do mar e seu cotidiano simples, saudável e ao mesmo tempo excitante, passam nas televisões para tornar sustentável nossa fantasia de que a Terra do Nunca existe. Quem sabe um dia Peter Pan venha nos buscar. Por enquanto, digerimos as imagens desses pilotos das ondas junto à salada.