Depois de oito anos sob a administração do seu primeiro presidente negro, os Estados Unidos veem a ironia de a disputa presidencial retomar temas que dividem o eleitorado entre o extremismo conservador e a tradição política. Para quem não vê muita diferença entre as duas expressões, talvez a melhor forma de explicá-las seja pela personificação. O conservadorismo extremado é representado pelo magnata republicano Donald Trump, e a política tradicional é encarnada pela ex-chefe de Estado democrata Hillary Clinton.
Os analistas são unânimes na avaliação de que dificilmente, depois da Superterçafeira realizada no último dia 1, Trump estará fora das eleições presidenciais de novembro. Já Hillary ainda tem disputa equilibrada com outro pré-candidato democrata, Bernie Sanders, um postulante ainda mais oposto ao ultraconservadorismo de Trump, a ponto de ser definido como "socialista" e preconizar a taxação de especuladores para irrigar a universidade pública e gratuita, alegando que milhões de americanos devem US$ 1,2 trilhão às universidades pela sua formação. Seria, nesse caso, a "latino-americanização" de uma disputa rara nos EUA, em que Trump simboliza a direita e Sanders a esquerda, um enfrentamento clássico.
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Hillary não chega a tanto. Mas representa o "establishment" de um país governado por Barack Obama, o homem que discursa a favor de minorias, é chamado de "socialista" e "queniano" (até hoje há quem diga que ele não é americano) e ainda reatou com Cuba.
– Essa atração pelo Trump pode ser explicada, sim, pela reação conservadora dos americanos que não aceitaram bem um presidente com o perfil de Obama. Mas os próprios republicanos sabem que a escolha de Trump nas primárias é um tiro no pé – avalia o professor de política internacional Alcides Vaz, da Universidade de Brasília (UnB).
Vaz raciocina da seguinte maneira: Trump é um outsider que nega até valores caros aos republicanos, como a religiosidade evangélica e a segurança.
– Pesquisas comprovam que Hillary perderia para os outros pré-candidatos republicanos, mas ganharia de Trump. É provável que ela, em uma disputa com Trump, consiga muitos votos de eleitores republicanos, que não são delegados e não o escolheram para a disputa.
Os muros do republicano
Trump fala em pôr muro aos mexicano, em expulsar 11 milhões de imigrantes sem documentos (entre eles algo como 100 mil brasileiros) e em impor 45% de sobretaxa a importações provenientes da China. Ou seja, abriria confrontos com um vizinho e com a outra potência econômica. Num raciocínio repleto de cinismo, os americanos – e os republicanos entre eles – se perguntam quem faria os trabalhos dos mexicanos, de babás e garçons.
Trump deixa os americanos sobressaltados ao fazer suas declarações politicamente incorretas, que costumam flertar com a misoginia e o racismo xenófobo. A pergunta que fica é: como votariam eleitores latinos, negros e mulheres?
Na lista de manifestações incômodas, estão as de chamar os mexicanos de estupradores, pedir a proibição da entrada de muçulmanos nos EUA fazer piadas com mulheres e deficientes físicos. Na semana passada, novo desconforto: negou-se a se distanciar de David Duke, dirigente de extrema-direita e ex-chefe da Ku Klux Klan (KKK), que o apoia.
– O ressurgimento da KKK, que era uma organização apagada e vem provocando arruaças, é um elemento a mais para constatarmos o nível de extremismo a que chegaram os americanos. E o americano médio não gosta disso – diz Vaz.
E então entra a figura de Obama, um negro, e Hillary, uma mulher que o representa. Os insultos e brincadeiras de mau gosto feitos por Trump alimentaram o discurso ultraconservador de uma faixa da população americana e de muitos delegados republicanos, o que faz com que ele tenha saído ileso de tantas polêmicas. A campanha para as prévias tem sido marcada pela contrariedade de eleitores contra a classe política dominante, o que favorece Trump, que durante meses se dedicou a criticar Washington, e prejudica Hillary.
Rejeição ao establishment
Esse sentimento cresceu desde a crise econômica de 2008, nunca totalmente resolvida.
Vem de um analista republicano a análise que pode resumir o "fenômeno Trump" e o atrativo que ele desperta para uma faixa do eleitorado. O magnata "tem altos níveis de rejeição, mas eleitores, de esquerda e de direita, cansaram de ser enganados por seus líderes".
Tanto o brasileiro Vaz quanto o americano Marston alertam para a possível "subestimação" dos democratas em relação a Bush. E os dois concordam: o crescimento inesperado do outsider americano é uma comprovação de que ele pode surpreender também em novembro.
Tornaram-se corriqueiros comentários de democratas que veem com bons olhos ter Trump como adversário. Mas o chefe de campanha da ex-chefe de Estado, John Podesta, deixa claro que não abrirá mão da máxima segundo a qual "não existe jogo jogado".
– Sempre levei Trump a sério – disse ele, em entrevista coletiva.
Estratégia democrata
A estratégia democrata em relação ao provável adversário na disputa presidencial é de classificar Trump como empresário "desalmado, misógino e fanfarão, inapto para ser presidente". E isso leva a outra conclusão: será uma campanha presidencial ríspida, com acusações dos mais diversos tipos e xingamentos.
Alerta para o enfaro da população americana em relação à política tradicional, o democrata David Axelrod, especialista em imagem e responsável pela eleição de Obama, recomenda que seja essa, mesmo, a estratégia. Se Hillary combater o adversário criticando suas visões de mundo, poderá sair prejudicada. Trump é "o punho" de "muitos eleitores que querem dar um murro na cara do sistema tradicional". E Hillary é a representação desse sistema.
Líderes conservadores em pânico
Seja qual for a estratégia de campanha, os democratas contam, na hora do voto, com o eleitor republicano médio e com o susto que Trump lhe provoca. Até o ex-candidato presidencial republicano em 2012, Mitt Romney, diz que a escolha de Trump como candidato "diminuiria amplamente" as perspectivas de um futuro seguro e próspero para os EUA. Romney vê, como "únicas propostas sérias", os pré-candidatos Ted Cruz, Marco Rubio e John Kasich. Trump, segundo ele, é um "falso", "fraude" e "fanfarrão". E outros líderes republicanos, como o senador John McCain, endossam as declarações de Romney.
O sentimento é de pânico entre eles.
México se mostra preocupado
O governo mexicano já adiantou que não pagará "sob qualquer circunstância" o gigantesco muro ao longo da fronteira com os EUA proposto por Trump. A advertência foi feita pelo ministro das Finanças do México, Luis Videgaray.
– Digo de forma enfática e categórica: o México, sob qualquer circunstância, não pagará pelo muro proposto por Trump – disse Videgaray em entrevista ao canal Milenio Televisión.
Videgaray foi além:
– Construir um muro entre México e EUA é uma péssima ideia que se baseia na ignorância e que não tem base na realidade da integração da América do Norte.
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Detalhe ZH
Pelo menos três dos maiores estrategistas republicanos – Karl Rove, Alex Castellanos e Gail Gitcho – já alertaram a cúpula do partido para os riscos da candidatura de Trump, não apenas em termos de uma divisão interna, mas de olho nas eleições de novembro.
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Este é Trump:
"Quando o México manda seu povo aos EUA, manda pessoas que têm um monte de problemas e trazem esses problemas para nós. Eles trazem as drogas, trazem o crime, são estupradores."
"Só estou interessado na Líbia se nós ficarmos com o petróleo. Senão, não tenho interesse."
"Faça com que os pacientes com ebola parem de entrar nos EUA. Trate-os, do melhor jeito possível, por lá. Os EUA têm problemas suficientes."
"Eu vou construir um grande muro - e, acredite, ninguém constrói muros melhor do que eu - e vou fazer isso de um jeito muito barato. Eu vou construir uma grande muralha em nossa fronteira sul, e vou fazer o México pagar por isso. Anote essas palavras."
"Era possível ver sangue saindo dos olhos dela. Sangue saindo de qualquer lugar." (sobre a jornalista Megyn Kelly. Depois, ressalvou que até já empregou mulheres).
"É melhor viver um dia como um leão, que cem como um cordeiro." (o problema é que essa frase foi proferida pelo fascista italiano Benito Mussolini).
Depois:
"Não acontece nada porque é de Mussolini. Mussolini era Mussolini. É uma citação muito boa, muito interessante e eu a conhecia".
E depois:
"Sei quem disse a citação. Que diferença faz? Se a disse Mussolini ou outra pessoa... É, sem dúvida, uma citação muito interessante."