Começam a vazar detalhes do depoimento de 17 horas que o ex-espião Antono "Jaime" Stiuso deu para a Justiça argentina. Stiuso é peça-chave nas investigações sobre a misteriosa morte do procurador argentino Alberto Nisman, um dia antes do depoimento que daria ao Congresso falando sobre o suposto acobertamento da então presidente Cristina Kirchner a autoridades iranianas que teriam envolvimento com o atentado contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia) em 1994 - o atentado teve 85 mortos que se somaram aos 29 de ataque semelhante ocorrido dois anos antes na embaixada de Israel, com 29 mortes. A morte de Nisman ocorreu pouco mais de um ano atrás.
No total, são 114 mortos. Há quem diga que Nisman é o 115º.
Pois bem. Stuiso, no seu depoimento, disse que o então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, interveio junto ao também então presidente Néstor Kirchner, marido de Cristina, para que retomasse uma cooperação nuclear com o Irã. Essa teria sido uma das causas da morte.
Stiuso garantiu, no depoimento que se iniciou na segunda-feira e invadiu a terça, que obteve essas informações de pessoas que participaram do processo e de comunicados diplomáticos.
Nas apurações de Nisman, que levavam à conclusão de que Cristina trocou benefícios comerciais pelo acobertamento, Stiuso foi fonte importante de captação das informações.
Ele garante: Nisman não se suicidou. Foi assassinado.
É importantíssimo esclarecer que Stiuso, na época, era espião e tinha relacionamento próximo ao presidente Kirchner. Aliás, ele ressalva: o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, pediu a Chávez a intermediação de uma reunião com Kirchner, mas essa reunião não se efetivou. No depoimento, Stiuso diz que Kirchner não quis se encontrar com o dirigente persa que se notabilizou por perseguir minorias e negar o Holocausto.
Chávez, por outro lado, definia Ahmadinejad como "irmão ideológico" - ambos tinham em comum a visão antiamericana e a dependência em relação ao petróleo.
As investigações, retomadas com força desde a posse do presidente Mauricio Macri e a indicação de Patricia Bullrich para ministra da Segurança, dirigem-se para a conclusão de que, efetivamente, a morte de Nisman foi provocada por terceiros.
Este colunista escreveu diversas vezes que a ideia de que Nisman tivesse tirado a própria vida no auge da vida profissional e bem naquele instante não era verossímil. Todas as evidências e todos os contextos faziam dessa hipótese um disparate.
Leia alguns textos:
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Há fatos que dispensam teses. Há obviedades que imploram por reflexões razoáveis e rejeitam complexidades forjadas para justificar determinado fim. A indigência intelectual e o contorcionismo argumentativo, típicos desta nossa “era da intransigência”, atingiram o auge nos dias seguintes ao 18 de janeiro em que o procurador argentino Alberto Nisman foi encontrado morto no seu apartamento, com uma bala enfiada na têmpora direita. Nisman investigava o barbarismo de um raro atentado terrorista em terras sul-americanas, o da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que deixou 85 mortos em 1994, somando-se aos 29 do ataque à embaixada de Israel, dois anos antes. Mais: horas depois da sua morte, Nisman iria depor sobre o suposto acobertamento da presidente Cristina Kirchner à igualmente suposta participação iraniana no episódio da Amia.
Talvez a frase mais inteligente de todas, nesta esquina da História em que parecemos personagens de um grande enredo nonsense, seja a curta sentença do jornalista argentino Jorge Lanata:
– Por favor, crianças...
Bem traduzido, ele quis dizer “não sejamos ingênuos”. Ou, quem sabe, “não sejamos espertos demais”.
O primeiro impulso da presidente e do seu séquito foi de sustentar a tese de suicídio, ainda que tudo estivesse por ser apurado e que a arma calibre 22 fumegasse ao lado do corpo quente. Na medida em que evidências, eloquentes como provas, tornavam inquestionável o homicídio ou o suicídio induzido, Cristina e os seus mudavam o discurso. Passaram a elaborar teorias conspiratórias referentes a uma trama para prejudicá-la. Tudo tão apressadamente que, no afã de defender a tese favorável, esqueceram-se de dar condolências à família de Nisman.
Mas, crianças... isso não se sustenta.
Na quarta-feira, 400 mil pessoas ganharam as ruas de Buenos Aires. Também em Córdoba, Santa Fé, Rosario. Foi a “marcha do silêncio” promovida por integrantes do Ministério Público, ex-colegas de Nisman. A documentação juntada pelo procurador morto foi corroborada pelo MP. A denúncia formal chegou ao Judiciário.
O fato é que Nisman pode ser considerado a 115ª vítima do terror, depois dos que sucumbiram sob os escombros da embaixada e da Amia. A comunidade israelita argentina organizou o enterro do procurador, também ele judeu, sem levar em conta a hipótese lunática do suicídio. Logo no exato instante em que, aos 51 anos, o homem, desprovido de traços suicidas, vive o auge profissional? Bem quando está às vésperas da glória em rede nacional? Nos dois atentados, havia as conexões local e internacional. Qual delas matou ou conduziu Nisman à morte? Pode-se apostar um alfajor Havana que é por aí que se chega a uma conclusão. Poderia ser alguém do serviço de inteligência argentino? Não dá para se descartar essa possibilidade, até porque se trata de um sistema de longa tradição mafiosa, herdeiro do fascismo de uma ditadura cruel como poucas, que deixou 30 mil mortos e desaparecidos entre as décadas de 1970 e 1980.
Se você é uma pessoa que mantém o saudabilíssimo hábito de trocar ideias, se não profere palavras como “petralha” ou “coxinha” para desqualificar o interlocutor, saiba que essa prática, de trocar ideias, entrou em desuso. Ela pressupõe a disposição de dar e receber argumentos a ponto de eventualmente até acatá-los. Intercâmbios são assim na sua essência. Mas, mesmo se você for um argentino kirchnerista com certidão lavrada em Río Gallegos, pense neste contexto: 1) Nisman foi morto – ou induzido ao suicídio – às vésperas do depoimento que daria ao Congresso sobre o Caso Amia, no qual acusaria Cristina de acobertar iranianos (cujo governo mantém relação estreita com autoridades sul-americanas próximas à Argentina); 2) Nisman não deixou carta de despedida; 3) Nisman deixou lista para compras no supermercado; 4) não havia pólvora nas mãos de Nisman; 5) a porta de serviço do apartamento de Nisman não estava trancada; 6) Nisman recebera ameaças de morte; 7) Nisman estava centrado no trabalho sobre a Amia.
Suicídio numa hora dessas? Ah, tá. Crianças, crianças...
São evidências evidentes demais (a cacofonia é proposital, caro leitor).
Agora que você já percebeu o absurdo desse teatro, sigamos adiante.
Até aqui, quem acompanha o noticiário e pensa livremente, sem contaminações, há de convir: o suicídio simples é hipótese insustentável. Mas por que são delirantes as teorias conspiratórias contra Cristina?
De novo, por itens: 1) a conspiração, por si só, já seria uma possibilidade remotíssima; 2) os responsáveis pela morte teriam forjado um suicídio caso fosse para incriminá-la?; 3) Cristina é um “pato manco” – está em fim de mandato, não pode se reeleger pela segunda vez consecutiva e não tem um aliado suficientemente competitivo para as eleições de outubro; 4) não falta gente de peso disposta a fazer o óbvio: matar Nisman para silenciá-lo. Pode ser alguém da Argentina ou de fora, ligado ou não ao governo, mas certamente não para prejudicar a presidente jogando um cadáver no seu colo; 5) dizem que Nisman mantinha contatos com a inteligência americana (a CIA). Ora, é evidente que sim! E o que isso muda? Tanto os EUA quanto Israel tinham e têm interesse direto no desfecho das investigações sobre esses dois casos de terrorismo internacional contra alvos judaicos. 6) Você acha que quem matou 114 teria muitos pruridos para matar o 115º?
Pronto. Removam-se as maluquices destinadas unicamente a defender um governo, uma tese ou uma força política. Sejamos razoáveis e não tornemos alguns casos mais complexos do que realmente são. O episódio é sério demais para nos darmos o luxo de engessamentos mentais inimigos da honestidade intelectual.
Repetindo Lanata, “por favor, crianças…”