O caráter nacional, como tudo mais, sofre o efeito corrosivo do tempo. O caso da França é exemplar. Há pouco, Paris foi palco de episódio emblemático. Logo após os ataques terroristas de novembro último, os parisienses resolveram dar uma demonstração de inconformismo e destemor. Saíram às ruas aos milhares exibindo cartazes enfáticos: "Não ao terrorismo!", "Paris vive!", "Não nos deixaremos intimidar!" etc.
De repente, estourou o escapamento de um carro. Foi um pandemônio. A multidão em pânico se dispersou com rapidez estarrecedora. Jovens na flor da idade se precipitaram, atropelando velhos e crianças. Os cartazes heroicos ficaram jogados no meio da rua, pisoteados pelos manifestantes em fuga.
Eis a verdade constrangedora: a França, tal como a imaginávamos e reverenciávamos, não existe mais. A França romântica, revolucionária, que abalou o mundo em 1789 e várias vezes ao longo do século 19 desapareceu até o último vestígio. E já há muito tempo, na verdade. O élan do país se quebrou, talvez para sempre, com a vitória de Pirro que foi a Primeira Guerra Mundial. Na Segunda Guerra, a França se notabilizou pela ausência. Convenhamos: em 1940, a invasão do país pela Alemanha foi um passeio vergonhoso. Aí apareceu de Gaulle, aquela figura eminentemente anacrônica, que se inventou como líder, e preservou a França, a sua imagem, o seu prestígio.
Mas os tempos heroicos já tinham ficado para trás. Ainda houve, em 1968, a revolução dos estudantes - na verdade, mais uma sucessão de poses e slogans criativos do que uma ameaça real ao poder constituído. Mas nem vale a pena tratar disso agora - foi o último estertor do espírito revolucionário francês.
Dei toda essa volta para falar um pouco do Brasil - e o meu espaço está acabando! Também no nosso país o caráter nacional passa por transformação constrangedora e sofre o desgaste inapelável do tempo.
Eis o que queria dizer: um dos traços do caráter nacional brasileiro é (ou era) a cordialidade - e não há quem me convença do contrário. Bem sei que a cordialidade encobria muita barbaridade e amaciava conflitos não resolvidos. Mas a cordialidade do brasileiro saltava aos olhos - não do próprio brasileiro, imerso no ambiente nacional, mas aos olhos de estrangeiros que passavam pelo país ou de um brasileiro como eu, que viveu grande parte da vida no exterior.
Bem, agora estou de novo há quase nove anos no exterior. E cada vez que volto ao país encontro um Brasil cada vez menos Brasil. A cordialidade foi para o espaço. No seu lugar, a grosseria, a troca de ofensas, a falta de medida nas palavras e nos atos. Famílias se dividem, amizades antigas vão para o saco, a mídia destila suspeita e ódio.
Os ânimos sempre se acirram em época de crise econômica, é natural. Mas o fator fundamental da mudança parece ser a polarização política (que aliás muito contribuiu e contribui para a própria crise econômica). Há muito que não se via tanto extremismo e tanta radicalização. Estamos nos equiparando, nesse particular, ao que há de pior na experiência da Argentina.
E aonde é que os argentinos chegaram com isso?
Paulo Nogueira Batista Jr. é vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, sediado em Xangai, mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.