O Papa pediu respeito aos direitos humanos na ONU. A prepotência, as desigualdades e a intolerância têm diariamente mostrado a cara de forma trágica neste mundo de informação e exposição instantâneas. Fiz este perfil, então, de um lutador pelos direitos humanos reconhecido América Latina afora. É um herói para muita gente, na nossa região e por todo o mundo. E vive aqui em Porto Alegre.
Com vocês, a incrível história de Jair Krischke. Leiam, por favor. Vale filme!
Em meio a bacias, brinquedos e penicos de um bazar simples no centro de Porto Alegre, um homem de barba longa, voz grave e gestos generosos passou décadas ganhando a vida atrás do balcão. Esse mesmo sujeito, quando atravessava o tal balcão, encarnava uma figura que se tornou conhecida América do Sul afora como defensor de outras vidas _ de pessoas fragilizadas pelo arbítrio.
Jair Krischke, hoje com 76 anos, é a cara dos direitos humanos na Porto Alegre onde nasceu _ mas também em Buenos Aires, Montevidéu e Santiago, para citar algumas das capitais de países onde seu nome provoca admiração e respeito.
Krischke se tornou figura conhecida durante a ditadura, quando estendeu a mão a perseguidos pelo regime de exceção. Hoje, na democracia, mantém a atividade no escritório próximo à Esquina Democrática, na Avenida Borges de Medeiros. O Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) foi fundado em 25 de março de 1979, mas demorou para conseguir o registro, naquela época ainda obscura de incipiente abertura do regime militar. O registro foi conseguido em 11 de agosto de 1980. Está fazendo, portanto, 35 anos.
O envolvimento de Jair com os direitos humanos ocorreu de forma curiosa. Como ele próprio diz, "por via indireta". A família de Jair é anglicana, e ele estudou numa escola católica. O avô era pastor e escrevia muito. Era conhecido, até porque Krischke não é um sobrenome comum. De cara, o pequeno Jair foi identificado como protestante e viveu a seguinte situação: em um colégio de padres, os padres tinham muita pena de dele, dizendo que "iria para o inferno" porque era protestante.
_ Diziam que eu era um menino comportado, mas que iria para o inferno. Aquilo não entrava na minha cabeça: se achavam que eu era um bom menino, por que iria para o inferno? Estou te falando de algo como 1947. E, naquele momento, o demônio era a Alemanha. Daí, eu era hostilizado também pelo sobrenome, meus colegas me chamavam de "alemão batata" e ainda que iria para o inferno.
No linguajar atual, Jair, já naquela época, voltou-se para a defesa dos excluídos porque sofreu bullying quando era criança. Ele ficava confuso. O tempo passou, e a confusão se transformou em vocação. No Movimento da Legalidade, quando o Rio Grande do Sul se ergueu contra a tentativa de golpe militar contra o presidente João Goulart em 1961 (três anos antes de conseguirem), Jair começou a achar seu rumo na vida.
_ Minha iniciação política foi feita com o Alberto Pasqualini, que era muito amigo da minha família. Eu era muito pequeno. No processo de redemocratização posterior à Era Vargas (passado o Estado Novo, que ocorreu entre 1937 e 1945), nos comícios, ali nas escadarias da prefeitura, eu ia com o Pasqualini. Eu tinha uns oito anos, e minha mãe, preocupada com a possibilidade de eu me perder, me fazia ficar segurando a ponta do casaco do Pasqualini. Ela dizia, "segura a ponta do casaco e não solta".
Paqualini, o ideolizador do trabalhismo, foi decisivo para o futuro de Jair.
_ Despertou-me para as questões sociais _ diz ele.
O grupo de jovens que se juntou em 1961, para proteger o processo legal e preservar as instituições democráticas em risco, formou, três anos depois, uma equipe dedicada a tirar perseguidos do país, no regime militar.
_ Ajudávamos, muito discretamente e de forma desorganizada, artesanal. Com o advento do AI-5 (em dezembro de 1968), as coisas se complicam. E havia uma nova leva que deve ser retirada do país. Em novembro de 1969, numa situação terrível, houve o assassinato do (Carlos) Marighela, e os dominicanos são presos. Ali na paróquia Santa Cecília, a gente tinha um esconderijo, onde as pessoas ficavam uma noite e iam para a fronteira. Com o assassinato do Marighela, caem os dominicanos, e chegam até a casa, uma rota de fuga. Continuamos trabalhando, a quantidade de pessoas que precisava deixar o país aumentava. Diziam que a gente trabalhava na clandestinidade, e eu dizia que não, que os clandestinos eram que estava no poder.
Era a resistência democrática. O MJDH surgiu assim: o AI-5 terminava sua vigência em 31 de dezembro de 1978, mas havia ocorrido, em novembro de 1978, em Porto Alegre, o sequestro dos oposicionistas uruguaios Universindo Díaz e Lilian Celiberti, flagrado e sendo a primeira prova do intercâmbio entre repressões de países sul-americano, na chamada "operação condor". Como o AI-5 chegava ao fim, eles resolveram "mostrar a cara". Em janeiro de 1979, iniciaram-se as reuniões semanais, com 40 ou 50 pessoas.
_ Fomos fazer o registro no cartório. O titular era o doutor José. Ele disse "vocês querem me criar problema". Argumentamos que não havia mais problema, não havia mais AI-5. Pedimos que registrasse por escrito a negativa, e ele voltou a dizer que se negava. Combinei que passaria lá novamente em uma semana. Ele se negou novamente, mas assinou o documento dizendo que se negara porque colidíamos com o estatuto dos partidos políticos (na época, havia o bipartidarismo, com a governista Arena e o PMDB como oposição aceita). Pronto, o documento com a negativa era o que precisava. Ajuizamos uma ação e a ganhamos.
_ Como o MJDH se sustenta? _ pergunto-lhe.
_ Somos pobres, mas orgulhosos. Nos sustentamos com os recursos dos próprios membros. Nosso estatuto diz que não podemos aceitar dinheiro público. Dinheiro governamental não entra aqui, nem municipal, nem estadual, nem federal.
_ E o bazar?
_ O bazar era do meu pai e possibilitava que eu me ausentasse, coisa e tal, o patrão era benevolente. Eu trabalhava com o meu pai.
Havia também, claro, projetos em que o movimento buscava recursos no Exterior.
_ Houve época em que era muito difícil ter um telefone, custava caro. Uma organização do governo belga nos deu os recursos para comprarmos um telefone. A Alemanha nos ajudava muito, com a ONG Miserium. A sede era sempre alugada, de repente algum companheiro pagava o aluguel.
Com essa estrutura, Jair se tornou uma referência internacional. Atuou fortemente, por exemplo, para reparação dos familiares de argentinos que desapareceram no Brasil. Uma busca que continua.
A argentina Claudia Allegrini, representante desse grupo, é grata ao brasileiro.
_ Jair nos ajuda muito, sempre ajudou. Devemos muito a ele _ conta ela.
Dessa atuação, surgem episódios curiosos. Foi Jair, pessoalmente, quem tirou a mulher do líder montonero (guerrilha argentina de esquerda), das garras da mais recente e mais cruel ditadura militar argentina (1976-1983). María Elpidia Martínez Agüero, também conhecida como La Negra, tinha cumprido cinco anos de prisão e estava em liberdade condicional, tinha de ir todas as semanas ao quartel, quando houve a Guerra das Malvinas (primeiro semestre de 1982). O britânicos, então, afundaram o cruzador Belgrano. Foi uma comoção na Argentina, todos se envolveram no caso.
_ Foi um momento especial para tirá-la da Argentina. Passamos ela para Uruguaiana, fizemos a fuga. Alugamos um aviãozinho do Salgado Filho a São Paulo e de São Paulo à Cidade do México, onde ela se encontrou com o Mario. Era ela e o Javier, o filho dos dois. O Javier tinha cinco anos, nasceu na prisão, em péssimas condições. Ela estava pendurada, levando choque na vagina, quando deu à luz _ relata Jair.
Outro caso paradigmático, o do biofísico uruguaio Claudio Benech. Certo dia, Jair recebeu carta da mulher do cientista, dizendo "olha, meu marido estava em casa com as crianças, uns homens entraram vestidos de civis e o levaram".
_ Montamos um plano de fuga. Ele estava num quartel. O plano foi construído com o irmão da Lilian Celiberti, o Ariel Celiberti, que tinha dois filhos pequenos, começou a levá-los para a mulher do Benech, que era pediatra. Assim, não levantávamos suspeitas. Benech fez uma análise da personalidade dos seus carcereiros, no quartel e percebeu que eles tinham desvios sexuais.
Benech começou a dizer que tinha saudade da mulher, que o carcereiros podiam levá-lo para passar a noite com ela, e ele faria mil posições de relações sexuais. E então o levaram na noite de Natal. Na ceia, foi feita a "sintonia fina" do plano.
_ Aí, Benech pediu para estar na passagem de ano novamente com a mulher, porque ainda tinha posições sexuais a fazer. Contou as posições que havia feito com ela no Natal. Dizia que iria se jogar nela de cima do guarda-roupa, coisas assim. Os caras babavam. Levaram ele e estão esperando até hoje.
A operação contou com quatro carros para possibilitar a passagem rápida e segura na fronteira com o Uruguai _ começou em Montevidéu, passou por Punta del Este em um pequeno e avariado Fiat. No Chuí, um Passat alugado e dois fuscas terminaram a travessia cinematográfica. O jornalista Carlos Alberto Kolecza acompanhou o caso como repórter de Zero Hora. Naquele momento, definiu Porto Alegre, em razão da atuação do MJDH, como "a capital dos direitos humanos".
_ Paramos para um café na rodoviária. Ele disse que estava se urinando. Fomos ao banheiro, ele abriu a mão e mostrou uma cápsula de cianureto que ele iria tomar se ocorresse algo de errado. E ele chorava _ emociona-se Jair ainda hoje.
Metaforicamente, as pessoas costumam dizer que os direitos humanos se tornaram um movimento que "só vai a enterro de bandido". O que Jair acha disso?
_ Essa é uma velha história. Foi industriada na ditadura. "Direitos humanos é amigo de bandidos", dizem. Isso é tão absurdo que não resiste a dois segundos e cinco neurônios. Porque denunciávamos as atrocidades da ditadura, inventaram esta história de que direitos humanos são coisa de bandidos _ defende ele.
E a pergunta a Jair é inevitável: qual o foco do movimento hoje?
_ A igualdade, a ideia de que existe só uma raça: a raça humana.