Ao observar com atenção os episódios mais recentes nos principais sócios do Mercosul, a constatação é desoladora: não sobraria um caso fosse aplicada para valer a tal cláusula democrática do bloco.
A cláusula democrática prevê que um país será suspenso do Mercosul caso não esteja de acordo com as regras da institucionalidade.
Pois bem, vejamos o que ocorre na Venezuela, na Argentina e agora também no Brasil - andam se diluindo os nossos motivos de orgulho pátrio.
1) Venezuela: ao anunciar a reforma no gabinete como consequência da acachapante derrota eleitoral, o presidente Nicolás Maduro prometeu usar todo o peso dos poderes Executivo e Judiciário, sob seu controle, para resistir a planos oposicionistas de aproveitar as amplas prerrogativas da maioria qualificada no Legislativo para alterar os rumos do governo. O presidente também prometeu vetar o projeto de lei da oposição para anistiar dezenas de presos políticos sob a acusação de instigar violentos protestos no ano passado, que resultaram em 43 mortos - a maioria deles opositores vítimas de confrontos com a própria polícia. Resistirá aos planos de convocar um referendo revogatório para tirá-lo do poder a partir de abril de 2016. E usou frases fortes, como "O povo e as Forças Armadas saberão o que fazer comigo". Disse ainda: "Ganharam os maus. Esta (a nova) é uma Assembleia Nacional Legislativa contrarrevolucionária." E foi mais longe: criticou os eleitores dos setores populares, decepcionados com o chavismo, que votaram com a oposição. O que disse Maduro sobre eles? "Entendo esse voto, mas foi um erro. Um voto contra vocês mesmos". E foi bem mais longe. "Eu tinha a meta de construir 4 milhões de casas populares, mas agora não sei. Pedi o seu apoio e você não me deu". "Um tablet custa 300 mil bolívares na loja. Mas eu, meu querido, te entrego de graça. Não sei se isso continuará sendo possível agora". Desenha-se um claro confronto entre poderes. E a democracia sofre...
2) Argentina: o presidente interino do Senado, Federico Pinedo, aliado do presidente eleito Mauricio Macri, será o presidente da Argentina por 12 horas, entre a meia-noite e o meio-dia desta quinta-feira. Por quê? Porque ocorreu o seguinte: Macri pediu que a Justiça esclarecesse a que horas termina o mandato de Cristina Kirchner. Sustentava que acabava às 23h59 desta quarta-feira. Já Cristina e seus aliados argumentavam que seria no momento em que o eleito jurasse diante do parlamento, às 12h de quinta. Nesta quarta, a juíza Maria Servini de Cubría informou que o mandato de Macri começa à meia-noite de quinta. Cristina e Macri se desentenderam sobre a troca de mando. Cristina queria que a cerimônia fosse no Congresso, Macri, na Casa Rosada. O impasse atrasou os preparativos e provocou um bate-boca público entre os dois e seus aliados. Conforme despacho da juíza, o mandato de Cristina, para obedecer aos quatro anos exatos estabelecidos pela Constituição, termina na noite do dia 9, e o de Macri começa no dia 10. A juíza afirma, porém, que o eleito e a vice, Gabriela Michetti, só tomam posse do cargo no momento em que fizerem o juramento no Congresso. Sendo assim, entre a meia-noite e às 12h, o governo estará nas mãos do presidente do Senado, para que se evite um vácuo. Importante que se diga: o presidente titular do Senado é o vice-presidente da República. Por isso, Pinedo é interino. Na prática, a Argentina terá três presidentes em 24 horas. Cá entre nós: se um tema protocolar provoca tamanha confusão, imagina o que será a disputa entre o novo governo e a oposição peronista... Intransigência não combina com democracia.
3) Brasil: o presidente da Câmara dos Deputadas, Eduardo Cunha, é o parlamentar de dá o tom do futuro político brasileiro. Detalhe: Cunha, representante do conservadorismo religioso, responde a acusações fortes por atos de corrupção e falta de ética. Com motivações juridicamente discutíveis, busca o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que, para muitos, independentemente da baixa popularidade presidencial (10%), dos casos de corrupção investigados atualmente e da qualidade do seu governo, não justificaria medida tão drástica. O temor é de que o Brasil, que se vangloriava de ter instituições democráticas mais sólidas que os vizinhos, sofra um retrocesso, com oposicionistas de ocasião sempre prontos a buscar um atalho para derrubar o adversário no poder, Na noite de terça-feira, um juiz do Supremo Tribunal Federal suspendeu o processo de impeachment até o dia 16, depois de aceitar denúncia de irregularidade na eleição da comissão especial que estudará as denúncias contra Dilma. O recurso foi apresentado por governistas após tumultuada votação secreta em que a oposição se uniu em uma maioria de 39 membros na comissão especial, de um total de 65. O voto secreto foi imposto por Cunha, inimigo de Dilma, e desatou uma avalanche de discussões, gritaria, tentativas de agressão entre legisladores e até urnas quebradas. O jornal O Dia, do Rio de Janeiro, publicou carta aberta de uma professora aposentada, Sonia Maria Zampronha Roque, que parece sintetizar o sentimento de milhões de brasileiros ante a "guerra política" desatada em Brasília. "Não suporto mais ver o país paralisado com tantos problemas", escreveu a professora de 68 anos. "Senhores políticos, parem com suas disputas e façam como a maioria do povo brasileiro: trabalhem!". Onze meses após ganhar seu segundo mandato, Dilma se diz vítima de um golpe que atribui ao fato da oposição não admitir a derrota.A oposição sustenta o pedido de impeachment em episódios de corrupção que atingiram em cheio o partido de Dilma, o PT.