A personagem do ano é a mulher que sai de casa arrastando chinelos e se dirige a uma repartição do município para dizer:
- Vim aqui devolver o cartão do Bolsa Família.
A cena repetiu-se durante todo o 2015 em prefeituras do sertão nordestino ou daqui mesmo, de Canguçu, de Rosário, de Cacequi. A mãe aprochega-se do balcão para anunciar uma decisão importante. Enfia a mão na bolsa em busca do cartão e puxa aquilo que é provisório em meio a outras coisas muito permanentes. E a moça do guichê pergunta:
- A senhora pode me dizer por que está devolvendo o cartão?
- Porque agora, e enquanto Deus desejar, não preciso mais disso.
Imagine a cena da mãe que sai de casa perfumada, com o melhor vestido floreado, não para pedir ajuda, mas para dizer que não precisa mais do amparo do governo para dar de comer aos filhos. Como a decisão foi tomada com o marido e a filharada, mesmo que a grande maioria nem marido tenha?
São as mulheres que fazem a gestão do benefício do Bolsa Família. Multiplicam os contadinhos. Mas, segundo alguns contrariados com tanta fartura, seriam o exemplo de povo viciado em esmolas. Uma mãe viciada em cento e poucos reais por mês.
Viciada em moedinhas que compram farinha de mandioca, do mesmo jeito que alguns empresários se tornaram viciados em subsídios, isenção de impostos, financiamentos com juro baixo, esquemas de proteção de mercado e outras mumunhas. Enquanto, claro, falam mal do Estado.
Uma mãe assim deveria dar curso de bons modos aos que atacam o Bolsa Família como distorção que não faz bem ao povo e ao país. O povo deveria entregar-se aos milagres do livre mercado, que muitos dos detratores do Bolsa Família defendem só nas teorias.
E também juízes, promotores e procuradores beneficiados com auxílio-moradia e auxílio-alimentação perpétuos podem aprender com uma mãe pobre que se dispõe a devolver aquilo que não precisa mais, porque arranjou um emprego ou descobriu um jeito de se virar sem o socorro do governo.
A personagem de um ano de crise braba não é uma, são as milhares de mães que entregaram o cartão do Bolsa Família em 2015, sem que ninguém lhes pedisse.
Os outros agarrados a benefícios mais graúdos, que ainda se lambuzam em privilégios que eu, você e todos nós pagamos, deveriam conversar com essas mães. Mas é difícil. Eles preferem continuar viciados em bolsas fartas que também as mães do Bolsa Família ajudam a sustentar.