Conheci a casa-biblioteca-museu do historiador Péricles Azambuja em Santa Vitória do Palmar. Era um labirinto de livros, pastas e arquivos. Em 2003, ele me recebeu para falar da Antártica, sua paixão. Descobri que o melhor assunto eram os naufrágios. Azambuja sabia quase tudo dos navios afundados por perto do farol do Albardão.
Ganhei um livro dele, História das Terras e Mares do Chuí, e anotações com nomes de náufragos de todas as épocas, de toda parte da Europa. Me contou que muitos sobreviventes ficaram no Rio Grande do Sul, até porque poucos conseguiam voltar a Portugal, Espanha, Grécia, França. Perguntei se era possível encontrar descendentes deles no sul do Estado. Ele me disse: tente.
Com a lista de sobrenomes, passei a telefonar para moradores da região ao redor de Rio Grande. Os consultados não sabiam se o sobrenome era de um náufrago, ou se desculpavam como se dissessem: me deixa fora desta.
Não queriam aparecer no jornal como descendentes de marinheiros miseráveis extraviados, que ficaram aqui sem nada. Desisti da empreitada, e Azambuja morreu há dois anos.
Penso nos náufragos do Albardão e nos náufragos do Mediterrâneo e do Mar Egeu. Claro que são situações diferentes. Aqueles vinham atrás de ouro, prata e especiarias. Os náufragos de hoje fogem da morte. A Europa os rejeita não só por temer que tomem empregos escassos e usem serviços públicos. Eles podem aumentar a mistura que lhes ameaça uma pretensa pureza de etnias e castas, além da propriedade, dos territórios e dos destinos.
Refugiados-náufragos são a pior categoria de migrante, segundo os racistas que contaminam a Europa. É o que também boa parte dos brasileiros pensa dos estrangeiros que continuam chegando aqui.
Nós, brancos, pardos ou mamelucos, somos todos descendentes de migrantes ou de navegantes extraviados, sempre consolados pela romantização das nossas origens. Nossos ancestrais, na visão mais lírica que nos protege, seriam gente sem defeitos.
Não somos descendentes dos sobreviventes do Albardão, mas nos constrange admitir que a maioria dos nossos velhos eram, pelos ainda vigentes enquadramentos econômico, social e moral, cidadãos de terceira classe. Eram homens e mulheres expulsos de onde viviam por serem os menos aptos.
Um caingangue pode nos olhar e dizer: vocês todos são descendentes de náufragos.