Sempre que os ipês começam a pintar as calçadas de Porto Alegre, eu começo a poupar uns trocados para os gastos com a Feira do Livro – lançamentos autografados por amigos, leituras sugeridas, curiosidades imprevistas e invariavelmente uma ou outra obra infantil sem destinação específica, para presentear e investir em futuros leitores. Livro, como apregoa sabiamente um manual de aleitamento materno, é também um presente para a vida toda, pois diverte, instrui e não tem contraindicação.
Mas tem inimigos — entre os quais, as traças, os censores e a ignorância. Este último é o pior, como prova um vídeo em fase de viralização. Na gravação, uma jovem de Goiânia mostra um livro infantil, lê alguns parágrafos e faz uma denúncia candente contra a autora, acusando-a de tentar induzir os pequenos leitores ao suicídio. Fiquei chocado ao ouvir a moça. E ainda mais espantado quando ela mencionou o nome da escritora: Ana Maria Machado. Atualmente com 77 anos, ela já escreveu mais de 100 livros, é ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e um nome muito respeitado na literatura infantil no país. Corri para buscar informações sobre o assunto.
O livro chama-se O Menino que Espiava pra Dentro. Foi publicado em 1983 e adotado por diversas escolas brasileiras. Em determinado trecho da história, o personagem pensa em se engasgar com uma maçã para acessar o mundo da imaginação, alusão simbólica da autora aos clássicos Branca de Neve e Bela Adormecida. Não foi uma analogia muito feliz, reconheço, até mesmo porque o verbo engasgar remete a situações de pânico para pais e crianças. Mas por que será que só agora, com duas décadas e meia de circulação, é que o referido livro está sendo acusado de fazer apologia ao suicídio?
Por causa da cultura da superficialidade, penso eu. Pessoas que se informam preferencialmente por redes sociais, por comentários alheios e por vídeos opinativos tendem a julgar pelas aparências, sem conhecer os fatos contextualizados. E o mais desconcertante é que em muitos casos de linchamento virtual sequer existe má intenção. Antigamente era mais seguro escrever do que falar, pois dava tempo de refletir. Agora que as pessoas falam pela ponta dos dedos, danou-se a ponderação.
Evidentemente, o fato de ser famosa e reconhecida não isenta a escritora de uma ou outra escorregadela no uso das palavras. Mas daí a acusá-la de cometer um crime vai enorme distância. Quem leva tudo ao pé da letra tende a se equivocar. As crianças têm esse direito. Os adultos não. Cabe a eles buscar informações completas, acompanhar a meninada na leitura, desfazer mal-entendidos e também — por que não? — questionar democraticamente os responsáveis por publicações duvidosas.
Porém, sem fogueiras e julgamentos sumários. Até como desagravo, Ana Maria Machado continua na minha lista de leituras recomendadas a crianças de todas as idades.