Foi perturbador o desfile da Beija-Flor.
Não é a primeira vez que a escola de Nilópolis mostra as mazelas do país no sambódromo da Marquês de Sapucaí. Em 1989, o carnavalesco Joãosinho Trinta causou perplexidade ao levar a miséria para a avenida, com o enredo "Ratos e urubus, larguem a minha fantasia", marcado pelo célebre episódio do Cristo censurado. Agora, porém, a crítica social parece ter alcançado maior contundência exatamente por sua semelhança com a realidade.
O Brasil teatralizado pela escola carioca nos carros alegóricos e nas fantasias aterradoras não é estranho a nenhum brasileiro. Todos convivemos, diariamente, com a violência, a corrupção, os crimes hediondos, as balas perdidas, as desigualdades, os preconceitos, as injustiças e os abandonos. Nem todos, porém, somos apenas vítimas dessas más ações. Somos, também, os opressores. Com raras exceções, são brasileiros esses seres perversos que empunham armas, corrompem e são corrompidos, discriminam seus semelhantes, vestem colarinho branco para subtrair a nação ou utilizam o poder em causa própria.
Por isso, cada ala que passava na madrugada de ontem deixava uma sensação de desconforto no público. O próprio samba-enredo – "Monstro é aquele que não sabe amar (Os filhos abandonados da Pátria que os pariu)" – soava como um hino de desamparo. Ainda assim, os assistentes não apenas cantaram junto como também invadiram a pista no final do desfile e foram atrás da escola, como crianças enfeitiçadas pelo flautista de Hamelin.
A identificação foi total.
Não sei muito da parte técnica do Carnaval. É provável que os jurados tenham visto erros de harmonia, evolução, enredo ou algum outro detalhe que lhes cabe observar. Mas num quesito da minha avaliação pessoal a Beija-Flor mereceu 10: a coragem de mostrar o Brasil como ele é.
Nosso desafio, como brasileiros, é fazê-lo melhor para os próximos Carnavais.