Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Não falta quem se queixe do nosso litoral: o vento, a água fria e marrom. Mas a costa gaúcha tem, pelo menos, uma grande vantagem: a praia reta, plana, larga, é o lugar ideal para quem gosta de caminhar, como mais uma vez se viu neste verão.
Na praia ou na cidade, há cada vez mais gente caminhando. E caminhando com aquele fervor que até há pouco tempo estava associado à religião ou a uma causa política: as procissões, as peregrinações, de um lado, e as marchas (a Washington, a Brasília) de outro. Jesus e seus discípulos andavam sem cessar. Os hebreus tiveram de vagar pelo deserto durante quarenta anos, antes de entrar na Terra Prometida (grande nome para uma academia de ginástica, hein?). Desde que se constatou, contudo, que caminhar faz bem à saúde, uma nova seita formou-se, uma seita benigna mas entusiasta: a gloriosa seita dos caminhantes. A marcha logo se transformou em um hábito que a gente não consegue abandonar: os tênis passam a fazer parte de qualquer bagagem.
Caminhar não é a mesma coisa que passear. Passear é espairecer, sem preocupação com distância ou com tempo. Devaneios de um Caminhante Solitário foi o título que Rousseau deu a um livro famoso. De fato, os românticos podiam percorrer campos e florestas enquanto devaneavam: tinham muito tempo para isso e não temiam o enfarte. Não é o caso daqueles que caminham disciplinadamente. Estes estabelecem metas, envolvendo tempo, distância e calorias – e tratam de cumpri-las. Muitos andam com técnica apurada, cuidando a postura, mexendo com os braços: é um exercício físico levado a sério.Que, no entanto, encontra alguns obstáculos. Na cidade, nem sempre há bons lugares para andar. Nossas ruas, muitas vezes esburacadas, não ajudam, e o mesmo pode ser dito do trânsito. Isto, sem falar no risco de assalto. No parque a coisa já é melhor, mas aí o problema é outro, é o problema dos conhecidos, que insistem em interceptar – para fins de confraternização – os caminhantes, sem se dar conta da grave falta que isto representa, sobretudo quando o caminhante não quer ser indelicado. Maurício Sirotsky, o fundador da RBS, caminhava no Parcão onde, como se pode imaginar, tinha numerosos conhecidos. Naturalmente queriam falar com ele; ao que Maurício, sempre afável, não se negava: “Fala”, dizia, “mas me acompanha.”
Outros obstáculos surgem, às vezes inesperados. No New England Journal of Medicine li o relato de um médico que, no seu trajeto de caminhada (ou de corrida, é irrelevante), era atacado por pássaros, cujo espaço geográfico ele aparentemente invadia. Para se livrar do perigo, bolou uma espécie de chapéu que imitava a cabeça de uma grande ave, com bico e olhos enormes. Uma solução que funcionava e que teria tornado inócuo o clássico de Hitchcock, Os Pássaros.
Falando em clássicos, era bem sugestivo o título de um outro famoso filme, este de George Stevens: Assim Caminha a Humanidade. E como é mesmo que caminha a humanidade, neste começo do terceiro milênio? De tênis, com um olho no relógio e outro na balança.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"