Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Em meados do século passado eram muito populares os livros do maranhense Humberto de Campos e de alguém que se escondia sob o pseudônimo de M. Delly (dois irmãos, Frédérice Jeanne de la Rosière). Eram obras que fascinavam milhares de leitores.Pergunta: quantas pessoas hoje sabem desses livros? Não muitas: literatura também é moda, e moda passa. No entanto existe uma obra cujo início data de cerca de 3 mil anos atrás e que até hoje é best-seller: a Bíblia. São 500 milhões de exemplares vendidos anualmente. No Brasil, segundo o Instituto Pró-Livro, a Bíblia é o livro mais lido, à frente de didáticos e da ficção.Isto sem falar nas adaptações as mais diversas. Agora mesmo acaba de aparecer na Suécia uma revista que apresenta trechos do Velho e do Novo Testamento,ilustrados por personagens como Angelina Jolie, Bono e Che Guevara.
O termo "Bíblia" é grego e significa "livros". De fato, a Bíblia é antes uma coleção de livros. Em hebraico esta coletânea chama-se Tanach, sigla formada por três letras: o T de Torah (que, por sua vez, é a coleção dos cinco livros de Moisés, o Pentateuco), o N de Neviim (Profetas) e o CH de Chetubim ou Ketubim (Escritos). A Bíblia tem vários autores, como se comprova pelos diferentes estilos ou tradições. A mais antiga é a tradição Javista, simbolizada pela letra J, de Javeh ou Jeová: o nome de Deus era pronunciado apenas uma vez ao ano, pelo sacerdote, no templo de Jerusalém. A segunda tradição é Eloísta: Eloim ou Adonai era a denominação dada a Deus nas preces cotidianas. Depois vem a tradição do Deuteronômio (D), do grego deutero nomos, segunda lei (tradução inapropriada do hebraico: deveria ser "cópia da Lei", porque esta parte da Bíblia repete em parte a narrativa e as prescrições de outros livros bíblicos). Finalmente, há a tradição Sacerdotal (P, do inglês Priestly). O conjunto destes livros foi denominado, pelo cristianismo, de Antigo Testamento, antecedendo cronologicamente o Novo Testamento, que narra a vida de Jesus. No presente texto, e para simplificar, Bíblia designa o Antigo Testamento.
Podemos ler a Bíblia de várias maneiras. Em primeiro lugar, pode ser uma leitura religiosa, espiritual – a leitura que faz o crente. Pode também ser uma leitura histórica, refazendo, às vezes com razoável objetividade, a trajetória de um pequeno grupo humano do Oriente Médio, os hebreus. Por último, mas não menos importante, pode-se fazer da Bíblia uma leitura literária, e para isto um ótimo modelo é a obra de Robert Alter A Arte da Narrativa Bíblica (Cia das Letras, 285 páginas, R$ 44,70, tradução de Vera Pereira). O autor, professor de literatura em Berkeley, é notável autoridade no tema, responsável pela tradução, para o inglês, de vários textos do Antigo Testamento e organizador, junto com Frank Kermode, de um monumental Guia Literário da Bíblia (1987).
Alter não discute a Bíblia do ponto de vista religioso ou histórico. O que lhe interessa, fundamentalmente, são as histórias ali narradas e que ele analisará como uma grande obra da literatura. E por que é uma grande obra? Em primeiro lugar pela concisão, pela economia; a parábola, por exemplo, narra, em não mais que umas poucas linhas, histórias de grande impacto. Depois, pelo estilo. O narrador bíblico é, como Deus (e como muitos dos escritores em geral), um narrador onisciente; ele sabe de tudo, inclusive aquilo que está oculto nos corações e nas mentes dos personagens. Mas, diz Alter, este narrador combina onisciência com discrição. Ele não vai explorar os pensamentos de Caim quando este mata Abel; não precisa fazer isso, porque os personagens bíblicos são personagens poderosos, que vivem até o limite as paixões humanas – o que, entre parênteses, explica a sua permanência. A inveja de Caim não se distingue, a não ser pelo grau (e talvez nem pelo grau), da inveja de um executivo diante do colega mais bem sucedido.
Não é de admirar, portanto, que muitos escritores tenham usado a forma e o conteúdo da Bíblia como fonte de inspiração. Franz Kafka ficou famoso por suas parábolas, Thomas Mann baseou num episódio do Antigo Testamento a sua tetralogia José e Seus Irmãos.Tudo isto explica a atualidade da Bíblia. Como conclui Alter: "Ao apreciar as narrativas bíblicas como histórias, podemos ver com mais nitidez o que elas querem nos dizer sobre Deus, o ser humano e o universo."
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
-06/11/2007: "Ler faz bem à saúde"
-19/04/1997: "O ferrão da morte"
-30/11/1997: "Os estranhos caminhos da história"
-05/03/2000: "A gloriosa seita dos caminhantes"
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