Mesmo quem não é noveleiro deve lembrar: em fevereiro de 2014, o país parou para ver o primeiro beijo gay na Globo, trocado pelos atores Mateus Solano e Thiago Fragoso no último capítulo da novela Amor à Vida. Os índices de rejeição à cena foram mínimos se comparados à sua ampla aceitação. Na ocasião, eu estava em Gramado, assistindo à tevê num quarto de hotel, e me lembro de ter escutado fogos de artifício quando os lábios dos dois se encontraram, e não havia jogo de futebol acontecendo.
Corta para o primeiro capítulo da novela Babilônia, reunindo duas grandes divas da dramaturgia nacional, Fernanda Montenegro e Natalia Thimberg, totens da dignidade, cujos personagens deram um selinho que iria repercutir estrondosamente nas rede sociais: foram condenadas ao fogo do inferno. Um único segundo de afeto lésbico e o mundo caiu.
A diferença entre uma cena e outra: o casal de homens havia construído uma história durante todo o período em que a novela esteve no ar. Aproximação, dificuldades, dores, alegrias, superações. O beijo foi um epílogo natural. Já daquelas duas senhoras, no primeiro capítulo, ninguém sabia nada ainda, e não obtiveram perdão. Ganhar nossa condescendência assim, de forma instantânea? Sem chance.
Saindo da ficção para a vida real. Dois políticos escolhidos aleatoriamente para ilustrar este pensamento: Geddel e Lula. Por que é mais fácil condenar um do que o outro?
Porque Geddel não tem história. Este sobrenome estreou na nossa rotina há alguns meses, ninguém sabe de onde ele veio e pouco se importa para onde ele vai, ninguém reconheceria sua foto se a mostrassem no meio da rua durante uma enquete, só se sabe que ele escondia 51 milhões de reais dentro de malas e caixotes. Perdeu, zé ninguém.
Lula, não. Lula tem história. Saiu do Nordeste como boia fria, trabalhou como metalúrgico, virou um sindicalista importante, tem cena 1, cena 2, cena 3. Lula arregimentou seguidores em sua vida muito antes das redes sociais existirem. Lula tem nome, sobrenome, apelido social, família, rosto, digitais, voz, personalidade, começo e meio.
Como dedicar à Lula o mesmo fim que merece um Geddel sem começo e meio?
Especialistas não levam nada disso em consideração, mas a opinião pública, sim. A história contextualiza e atenua os fatos, mesmo quando eles são condenáveis (em tempo: beijos não são condenáveis; corrupção, sim). Surgir do nada nunca sugere inocência, mas ter caminhado muito até chegar aqui abranda o nosso julgamento.
Não estou em campanha, não tenho candidato, não há subtexto. Dei apenas dois exemplos do quanto uma trajetória reconhecida publicamente pode alterar o olhar de quem julga. Moral da história: que se tenha, pra começar, uma história.