Guardadas as proporções, Alberto Benegas Lynch é uma espécie de Roberto Campos da Argentina, no sentido de ser um pioneiro na disseminação das ideias liberais no país. Economista, professor e autor de 27 livros, também é conhecido por suas participações no Fórum da Liberdade, em Porto Alegre. Neste ano, recebeu a homenagem por vídeo, mas aceitou dar entrevista exclusiva à coluna por telefone. Aos 83 anos, ainda dá aulas todas as semanas em universidades como a Ucema, originada no Centro de Estudos Macroeconômicos da Argentina (Cema) e focada em cursos de pós-graduação em economia, finanças e administração de empresas. Benegas Lynch admite que há "contradições" no governo Milei, mas diz ter esperança de que o presidente que o tem como referência cumpra sua promessa e elimine o Banco Central.
Como vê, do ponto de vista liberal, o governo de Javier Milei?
Fazia 80 anos não escutávamos uma linguagem como a de Milei em sua campanha e no exercício da presidência. Ele fez muitas declarações extraordinárias. Destacaria o discurso de posse feito nas escadarias do Congresso e o feito em Davos. Ambos mostram temas muito importantes de caráter institucional, moral, monetário, fiscal, trabalhista, de relações exteriores. Isso já existiu na Argentina até o golpe fascista de 1930 e, pior, o de 1943, com o peronismo. A Argentina já foi a admiração do mundo. Os salários de peões rurais e operários industriais eram superiores aos pagos na Suíça ou na Itália. Tínhamos indicadores comparáveis aos dos Estados Unidos e, em alguns casos, melhores. Tinha gente que vinha 'fazer a América' na Argentina.
Por que o país involuiu?
Em seu livro O Antigo Regime e a Revolução, Alexis de Tocqueville diz que, em países onde houve grande progresso, as pessoas dão esse desenvolvimento como garantido. Esse é um grande erro. Para manter uma boa situação, é necessária a contribuição diária de cada um. A meus alunos, pode parecer exagero, mas convido que se perguntem todos os dias, antes de dormir, 'o que fiz hoje para que me respeitem?'. Se a resposta for 'nada', a pessoa não tem direito a se queixar. Somos responsáveis, cada um de nós, pelos outros.
Há aspectos que podem não coincidir. Nós, os liberais, não somos uma manada. Então, bem-vindas as dissidências. Somos individualistas, temos de mostrar nossas dissidências.
Por que sua lista de temas importantes abordados por Milei não inclui a questão econômica?
Falei em monetário, fiscal, trabalhista, de relações exteriores. O importante é destacar a estratégia. As metas e os objetivos são todos extraordinários. A tática, quer dizer, os métodos para chegar a esse resultado, tem contradições, como é normal. Há aspectos que podem não coincidir. Nós, os liberais, não somos uma manada. Então, bem-vindas as dissidências. Somos individualistas, temos de mostrar nossas dissidências. Na questão monetária, no dia 5 de abril ele voltou a afirmar, para a Bloomberg, que o plano de longo prazo é acabar com o Banco Central (BC).
É uma questão crucial, na sua visão?
Sim, por mais que os banqueiros centrais sejam os mais estratégicos e competentes, estão submetidos a uma escolha: emitir, contrair ou deixar igual a massa monetária (quantidade de dinheiro que circula). Qualquer caminho vai desfigurar os preços relativos, que são os únicos indicadores que o mercado tem para operar. Isso gera consumo de capital, redução de renda e salários em termos reais. Suponhamos que banqueiros centrais tenham uma percepção muito fina e façam o que as pessoas querem. Mas então, para que vão se impor se vão fazer o mesmo que as pessoas querem.
O Banco da Inglaterra, criado no século 16, dizia que todos os BCs do universo tinham uma missão: preservar o valor da unidade monetária. Nunca na história da humanidade nenhum BC conseguiu fazer isso.
Seria uma aventura?
Existe uma falácia ad populum (de apelo popular) que se todos fazem algo, está certo, e se ninguém faz, está errado. É preciso lembrar que viemos da pobreza, de tapa-rabos (tangas da pré-história, em tradução livre) e do garrote (instrumento que apertava o pescoço das vítimas até matar). Quando apareceu o arco e flecha, era desconhecido. Se não tivesse sido adotado, ainda estaríamos com o garrote. O Banco da Inglaterra, criado no século 16, dizia que todos os BCs do universo tinham uma missão: preservar o valor da unidade monetária. Nunca na história da humanidade nenhum BC conseguiu fazer isso. O que abriu primeiro esse tema, tirando as teias de aranha, foi Hayek, depois seguido por Milton Friedman. O ponto é que dinheiro é um assunto demasiado sério para deixar nas mãos de um banco central.
Para entender, o fim do BC será seguido necessariamente por dolarização?
São coisas diferentes. A extinção do BC implica que as pessoas escolham com qual moeda desejam operar. Se o BC for extinto, o mais provável, na primeira etapa, é a escolha pelo dólar, que é moeda mais conhecida. Mas é bom lembrar que durante a maior parte da história da humanidade, não existam BCs. São instituições de anteontem, em período histórico. Demoramos 200 anos para perceber que era um erro amarrar a emissão de moeda ao poder político.
O ministro do Interior (Guillermo Francos) está fazendo um intenso trabalho com os governadores para que possa passar ao menos a coluna vertebral, os aspectos medulares da proposta.
Tem expectativa de que o BC seja extinto por Milei?
Da última vez em que ele falou sobre isso, em 5 de abril, disse que era importante lembrar que esse é seu objetivo final. Não tenho bola de cristal para saber se vai acontecer ou não, mas tenho esperança, expectativa.
Neste momento, Milei tem de lidar com um nó legislativo, será possível desfazer?
Houve dificuldades no Congresso. Mas é importante destacar que o que pretende Milei é diferente do que pretenderam outros. Não é acumular poder, é devolver poder às pessoas. Houve vários mal-entendidos. Espero que se resolva, que a legislação passe pelo Congresso. E mesmo que não passe, ele vai fazer o que está na jurisdição do Executivo. O ministro do Interior (Guillermo Francos) está fazendo um intenso trabalho com os governadores para que possa passar ao menos a coluna vertebral, os aspectos medulares da proposta.
Ele costuma citar a minha definição de liberalismo, que é o respeito recíproco aos projetos de vida de outros. Isso não quer dizer aderir. O projeto do outro pode nos resultar repugnante. Mas se não há invasão de direitos, é legítimo.
É importante que isso ocorra dentro do jogo democrático?
Importantíssimo. No sentido republicano, em seus cinco aspectos: transparência do governo ante os governados, a responsabilidade, no mesmo sentido, a alternância do poder, a divisão dos poderes e a igualdade ante a lei. Mas esse tema da igualdade perante a lei, que já estava na Carta Magna, está vinculado estreitamente à ideia de justiça. Não somos iguais para ir a um campo de concentração. No mundo inteiro, não só na Argentina, nos separamos da noção de democracia, na parte central, do respeito aos direitos das pessoas, e na secundária, a contagem de votos. Estamos dando muita importância à contagem de votos e cada vez menos ao direito das pessoas. Hoje, para dividir as águas e deixar as ideias mais claras, as correntes deveriam ser divididas entre estatistas e liberais, não entre esquerda e direita. A direita se confunde com o fascismo e o conservadorismo, no sentido de defender o status quo, o que não é o caso dos liberais. A esquerda perdeu sua missão original. Era onde se colocavam os que se opunham a privilégios e abusos de poder. Depois, se aliaram às botas, à violência. Em meu último livro, Los Aparatos Estatales nos Aplastan (Os Aparelhos Estatais nos Oprimem), também me refiro aos Estados Unidos, que estão dando as costas aos valores extraordinários dos pais fundadores (que estabeleceu as bases da Constituição americana).
O que mais o identifica com Milei?
Ele costuma citar a minha definição de liberalismo, que é o respeito recíproco aos projetos de vida de outros. Isso não quer dizer aderir. O projeto do outro pode nos resultar repugnante. Mas se não há invasão de direitos, é legítimo. E não gosto da palavra "tolerância", que é inquisitorial. É como se alguém se pusesse no alto e ficasse perdoando os pecados dos outros.