Economista-chefe do BTG Pactual e ex-secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida conhece tanto as manhas do mercado quanto os meandros do governo. De seu ponto de vista privilegiado, vislumbra até a hipótese de que o Banco Central acelere os cortes no juro básico em 2024, dada a queda da inflação, afirmou nesta entrevista exclusiva à coluna dada pouco depois de chegar a Porto Alegre para o 25º Seminário Econômico Família Previdência. Desde que, frisa, o governo demonstre compromisso fiscal. Mas ao comentar que a inflação de 2023 só não ficou acima de 5,8% porque o governo cortou não só impostos federais, mas também estaduais, engrossou o coro dos economistas que veem a reforma tributária como uma espécie de "desculpa" para os aumentos da alíquota básica de ICMS nos Estados. Mansueto diz que existe, inclusive, uma solução fácil para isso: é só trocar a base de cálculo para a divisão para os quatro últimos anos, em vez de nos próximos quatros. E, quando a coluna quis saber se seria fácil assim, foi supersincero:
— Com ou sem reforma tributária, os governadores tentariam recompor a receita que eles perderam, porque a despesa não caiu.
Como vê a mais recente tentativa de alterar a meta de déficit zero, por emenda que limita os bloqueios ao orçamento?
O que ficou claro é que o limite de aumento de 0,6% a 2,5% seria para as despesas orçamentárias. Se não houver alta na receita, os gastos não poderia subir mais de 0,6%. Mas também há a meta de déficit primário zero, com margem de tolerância de 0,25% do PIB. Se houver risco ficar acima disso, teria de contingenciar (cortar despesas previstas), no limite de 25% da receita discricionária, o que dá pouco acima de R$ 50 bilhões. Todo mundo entendeu assim. Agora, está se tentando interpretação diferente (com restrição de até R$ 23 bilhões). E como não é tão claro que essa era a interpretação pretendida, estão tentando apresentar uma emenda à LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias). Se for aprovada, acaba sendo mudança da regra fiscal.
O mercado faz a conta de que, se o governo não tiver aumento arrecadação, vai ter de fazer um contingenciamento de cerca de R$ 50 bilhões, na prática um crescimento quase zero da despesa.
Os cortes forçados previstos no arcabouço são parte dos motivos do mercado para insistir na meta de déficit zero, mesmo projetando que não será alcançada?
Um dos cálculos que o mercado faz é de que será difícil entregar a meta zero no ano que vem, porque precisaria de um aumento muito forte de arrecadação, que não está acontecendo. Inclusive no segundo semestre deste ano, a arrecadação está decepcionando, como vimos no último relatório de avaliação trimestral, nesta semana que aumentou o déficit projetado para este ano de R$ 141,4 bilhões para R$ 177,4 bilhões. O mercado faz a conta de que, se o governo não tiver aumento arrecadação, vai ter de fazer um contingenciamento de cerca de R$ 50 bilhões, na prática um crescimento quase zero da despesa. Embora entregasse um déficit de R$ 80 bilhões a R$ 90 bilhões, como iria segurar o gasto, seria positivo, estaria demonstrando responsabilidade fiscal. O que assusta o mercado não é que não vai ser déficit zero, mas a impressão de que, se não tiver receita, também não vai querer segurar receita? É algo delicado, mas a regra não tem contingenciamento? Todos os governos não fazem contingenciamento? Então, porque esse não vai querer fazer?
O presidente já não disse que não vai querer fazer?
Não ficou muito claro. Em um primeiro momento, disse que não queria fazer. Depois, ficou acordado que teria contingenciamento. A crítica do presidente era em relação ao tamanho do contingenciamento. O que ele não queria era contingenciar R$ 50 bilhões. Há medidas que ainda serão analisadas pelo Congresso, como a MP 1185, da subvenção fiscal. Se aprovar nessas três semanas que faltam para o funcionamento do Congresso, será muito positivo. Mesmo que não consiga R$ 35 bilhões, se obtiver R$ 20 bilhões a R$ 25 bilhões, será muito positivo. Hoje, não está nas contas do mercado.
Ajuste fiscal, em qualquer lugar do mundo, é difícil. Envolve duas decisões que ninguém quer tomar: ou cortar despesas, ou aumentar arrecadação.
Como fica a posição do ministro da Fazenda, sob fogo cruzado?
Ajuste fiscal é difícil em qualquer lugar do mundo. Envolve duas decisões que ninguém quer tomar: cortar despesas, ou aumentar arrecadação. O ministro da Fazenda ganhou a confiança do mercado. É respeitado, o que é muito bom para o governo. No final de março, a bolsa estava em 100 mil pontos, a curva de juros, acima de 13% ao ano, e a inflação, projetada em 6%. Estamos terminando o ano com curva de juro em torno de 10,5%, bolsa perto de 130 mil pontos e câmbio abaixo de R$ 5. E inflação em 4,3%. Os fundamentos da economia brasileira não estão ruins. Se o governo mostrar que o fiscal vai melhorar, pode abrir espaço para o Banco Central ser mais agressivo no corte de juro. Quanto mais credibilidade o ministro da Fazenda tiver, menor será a inflação esperada, maior a queda do juro, maior o retorno do investimento e o crescimento da economia. O maior beneficiário de um ministro da Fazenda forte não é o mercado, é o governo.
Vê essa possibilidade?
Depende do compromisso com o fiscal. O cenário de inflação melhorou mais rápido do que todo mundo esperava. No ano passado, foi de 5,8%, e só não foi maior porque houve redução de ICMS com combustíveis, energia e telecomunicações e corte do imposto federal sobre combustível. Neste ano, estamos indo para inflação de 4,3%, com queda grande na inflação de serviços, que terminou o ano passado entre 8% e 9%. Esperava-se que, para cair, a taxa de desemprego teria de aumentar. Caiu, está no menor nível desde 2014, e a média trimestral anualizada da inflação de serviços está perto de 3%. Ninguém esperava isso, ninguém sabe explicar. O mercado espera inflação de 4% para 2024 e entre 3,5% até 2026. Se isso se confirmar, este governo vai encerrar com a menor média de inflação desde 1994. Antes, a menor inflação média em período de quatro anos foi o Lula 2, com 4,51%. O cenário não está ruim, é preciso mostrar que o compromisso fiscal vai melhorar.
No início do ano, sem pensar em reforma tributária, muitos Estados já tinham aumentado a alíquota modal para compensar parte dessa perda que tiveram com a redução do ICMS sobre combustíveis, energia e telecomunicação.
Esse corte de ICMS decidido pelo governo anterior vem sendo apontado como a real causa da onda de elevações das alíquotas em vários Estados, isso faz sentido?
Uma regra da reforma tributária prevê que a divisão do novo imposto entre os Estados será baseada na arrecadação dos próximos quatro anos. Isso gerou um incentivo para aumentar a alíquota. No início do ano, sem pensar em reforma tributária, muitos Estados já tinham aumentado a alíquota modal para compensar parte dessa perda que tiveram com a redução do ICMS sobre combustíveis, energia e telecomunicação. Só que, com essa regra da reforma, os Estados que não aumentassem diminuiriam a arrecadação em relação aos outros. Mas é fácil de corrigir: é só pegar a média dos últimos quatro anos, não dos próximos.
Isso resolveria?
Não sei. Mas sendo muito sincero, com ou sem a regra da reforma tributária, os governadores tentariam recompor a receita que eles perderam, porque a despesa não caiu.