Uma pesquisa incomum inquietou o país na semana passada: 33 milhões de brasileiros passam fome, como na década de 1990. A segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan) foi realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022 com entrevistas feitas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios de 26 Estados e Distrito Federal. Os conceitos de insegurança alimentar são "leve" (incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e/ou quando a qualidade da alimentação está comprometida), "moderada" (quantidade insuficiente de alimentos), e "grave" (privação no consumo de alimentos e fome).
Conforme o levantamento, há 125,2 milhões de brasileiros enquadrados em algum desses critérios, dos quais 28% estão na leve, 15,2% na moderada e 15,5% na grave. A distribuição segue a geografia da desigualdade: Na apresentação do levantamento, houve uma comparação com outro tipo de aferição, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), para indicar que o país havia regredido décadas no combate à fome. A coluna entrevistou Renato Maluf, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), uma das entidades responsáveis pelo trabalho, para esclarecer sobre as condições da pesquisa e um dos diagnósticos mais preocupantes: o de que só um programa de transferência de renda já não é suficiente para resolver o problema.
Como nasceu a pesquisa?
Decidimos fazer o primeiro, em dezembro de 2020, para preencher ausência do dado do IBGE, que só sai a cada quatro anos. O IBGE faz a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), que agora é parte da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), mas a mais recente era de 2017/2018. Antes, o IBGE divulgava o dado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que era mais frequente. Como temos competência técnica na rede, mobilizamos os parceiros e fizemos o primeiro levantamento.
E por que o segundo é mais abrangente?
Conseguimos mobilizar ajuda recorde de terceiros no segundo. Contamos, então, com uma amostra seis vezes superior. O levantamento foi de novembro a março de 2022 porque as chuvas comprometeram o levantamento de campo.
Por que a pesquisa faz relação com dados do Ipea da década de 1990, se é difícil comparar dados obtidos de formas diferentes?
Na verdade, não é uma comparação. Citamos dados do Ipea na apresentação para dar uma ideia da grandeza do problema. Nosso dado mostra que voltamos ao dado do contingente do Ipea. Na época, não existia o Ebia. Foi para ajudar as pessoas a compreender a gravidade do problema. A comparação não está no nosso relatório.
A fome, nesse montante que a gente viu na pesquisa, tem causas estruturais que remontam a 2016.
Na pandemia, houve um movimento de doações que pretendia evitar o não agravamento do problema, além do auxílio emergencial. Nada funcionou?
A fome, nesse montante que a gente viu na pesquisa, tem causas estruturais que remontam a 2016. Desde então, o desemprego, a precarização do trabalho, a interrupção da valorização do poder de compra do salário mínimo, a reforma trabalhista e o esvaziamento de programas sociais interromperam uma evolução do combate à fome. Bolsonaro fechou o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), o que está na origem da reversão do aumento da segurança alimentar. A pandemia se sobrepôs e agravou a situação que já existia antes, assim como inflação dos alimentos. Mas esse crescimento da fome não é resultado apenas da pandemia, vem de antes.
Por que uma das conclusões da pesquisa é de que não basta um programa de transferência de renda para reduzir a fome?
Porque a resposta exige medidas estruturais. Não se resolve com doações, nem apenas com um programa de transferência de renda um problema que é resultado também de situação do desemprego, de emprego precário e, agora, de um programa com desenho precário e insuficiente. É resultado de situações estruturais, não só da pandemia. E de omissão ou ação desastrosa deste governo.
Além do programa, havia políticas públicas de geração de emprego, de valorização do salário mínimo. Eram políticas que favoreceram segmentos em que existem mais vulnerabilidades.
Um programa bem desenhado resolveria?
Não. Tivemos um bem desenhando. É um erro achar que foi só o Bolsa Família que reduziu a fome. Além do programa, havia políticas públicas de geração de emprego, de valorização do salário mínimo. Eram políticas que favoreceram segmentos em que existem mais vulnerabilidades. Então, um programa de transferência de renda é necessário e urgente, mas não é suficiente. O que se tem hoje é abandono ou esvaziamento de um conjunto de ações. Não depende só do desenho. São necessárias ações complementares, como apoio à agricultura familiar, políticas para o semiárido e, principalmente, uma política eficiente de geração de emprego. Só programa de transferência de renda não soluciona a fome.
Nesse cenário, como vê a discussão de subsídio para combustíveis?
É mais um improviso e uma tentativa de solução na marreta, na falta de um nome mais acadêmico. Não há racionalidade. Isso é o governo tentando não perder a eleição. Não há lógica. Não sou contra subsídio, mas apelam para essa saída como um improviso eleitoreiro. É como o auxílio emergencial, que o governo queria dar R$ 200, o Congresso elevou para R$ 500 e o governo levou para R$ 600 para ter a última palavra. Mesmo com todas as idas e vindas, nunca passou de um improviso demagógico. As medidas não bem desenhadas, deixam milhões de pessoas de fora.
Como é possível voltar a reduzir a fome no país?
Com políticas sociais abrangentes e eficientes. É preciso recompor o Consea. Criar instâncias de integração no governo. Não deixar o tema restrito a apenas uma medida, uma política. Acima de tudo, é preciso que o tema entre na pauta presidencial. Tivemos êxito quando o governo colocou o tema na prioridade da sua agenda.