Ex-embaixador do Brasil na China, na Alemanha e nos Estados Unidos, entre outros países, Roberto Abdenur concilia conhecimentos de relações internacionais e economia. Foi coordenador de Assuntos Econômicos e Comerciais no Itamaraty e atuou no lançamento de parcerias estratégicas do Brasil com a China e a Alemanha.. Nesta entrevista à coluna, comenta o papel das sanções na guerra deflagrada pelo ataque da Rússia à Ucrânia e o comportamento da diplomacia brasileira durante os desdobramentos do conflito. Mesmo diante do agravamento do clima entre duas potências nucleares, Estados Unidos e Rússia, Abdenur identifica sinais de esperança nas conversas de líderes e adverte:
— Vão acontecer coisas horríveis se essa guerra não parar logo.
A economia nunca desempenhou papel tão importante em uma guerra?
É a primeira vez em que sanções econômicas são usadas como armas de guerra nessa proporção. Isso terá um forte impacto no objeto das sanções, a Rússia, mas também sobre o mundo inteiro. Um dos riscos é a carência de alimentos. E ainda há uma forte atuação das instituições financeiras internacionais para punições ainda mais forte. Durante a Segunda Guerra Mundial, os aliados embargaram a Alemanha para privá-la de insumos, mas o país já estava isolado e a economia era muito menos interdependente. A ajuda dos Estados Unidos com o Plano Marshall deu a largada para uma recuperação extraordinária, que gerou a União Europeia, que estou contente por ver que está se fortalecendo.
Além de alta de preços, pode haver escassez de alimentos?
Já houve alta de 26% na comida desde janeiro, o preço do gás natural triplicou durante a guerra, a inflação global já estava em 7% com pandemia e retomada da demanda. Isso provoca um desequilíbrio no mundo inteiro. Se as sanções continuarem por muito tempo, pode chegar a 10%, em um período em que a China tem baixo crescimento pelos seus padrões.
A China será decisiva nessa guerra?
Desde o primeiro momento, houve certa dualidade do discurso chinês. A abstenção da China na condenação das Nações Unidas ao ataque da Rússia à Ucrânia não foi uma derrota mas quebrou as expectativas da Rússia, que esperava voto contrário. Mas a China leva muito a sério o respeito à soberania e à integridade territorial, dois princípios da ONU e da diplomacia brasileira.
A China também teria uma agenda de invasões?
Há leves movimentos separatistas no Tibete e em Xinjiang. São duas províncias em que a população não é han, a principal etnia chinesa, que domina 95%. Os uigures de Xinjiang e os tibetanos são duas populações oprimidas pela China, sem contar o problema com a autonomia de Taiwan, mas é muito diferente. A Ucrânia é um país independente. O presidente Joe Biden, dos EUA, disse algo importante na conversa com Xi Jinping (presidente da China). Disse que os EUA defendem o princípio de "uma só China" e que não apoiarão ações unilaterais. Foi importante porque há muita simpatia pela separação de Taiwan nos EUA. Mas não acredito em invasão em Taiwan. Só se houver declaração de independência.
Há preocupação internacional com resultados dessas negociação para evitar que a Ucrânia faça concessões excessivas e alimente aventuras militares como a de Putin.
As expectativas de trégua são críveis?
Uma das tentativas com mais chances é de uma reunião entre Vladimir Putin e Volodimir Zelensky que está sendo tentada pelo presidente turco, Erdogan. A Rússia está enfrentando muitos prejuízos, mas de suas seis exigências para a paz, quatro são factíveis, duas não. As possíveis são o compromisso de não aderir à Otan, a desmilitarização no estilo austríaco, sem abrir mão totalmente das forças armadas, o uso livre da língua russa e a tal desnazificação. Existe um partido neonazista na Ucrânia, que teve 1,6% dos votos na eleição em que Zelensky venceu com 73%. Não será difícil para governo eleito democraticamente, com um presidente de origem judaica, aceitar essa cláusula e acabar com a propaganda falaciosa da Rússia. Mais difíceis são as cobranças de independência das províncias do Donbass (Donetsk e Luhansk) e do reconhecimento da Crimeia como território russo. Há preocupação internacional com resultados dessas negociação para evitar que a Ucrânia faça concessões excessivas e alimente aventuras militares como a de Putin.
Os temores de endurecimento de Putin são fundados?
Depois do discurso no estádio feito na sexta-feira (18), pode-se falar além de 'restalinização' da Rússia, como apontou (a revista britânica) The Economist. Pode temer uma hitlerização. Ele mencionou 'purificação da nação'. Não falou em raça, mas disse que os críticos são 'traidores' e que é preciso 'cuspir as moscas que entraram na nossa boca'. É possível que as dificuldades econômicas para os russos aumentem, pelas sanções, e manifestações de descontentamento devem ganhar força. Putin tende a ficar ainda mais repressivo. Vai endurecer para dentro e para fora, com uso indiscriminado da violência. Quer minar a resistência ucraniana atacando teatros, matando civis. A dúvida é se pode chegar a fazer o que ver em Grosni, a capital da Chechênia, que ensaiou um movimento de libertação da Rússia e foi bombardeada, esmagada. Vão acontecer coisas horríveis se essa guerra não parar logo.
Os chineses não querem perder esses mercados (EUA e Europa). Têm muito a perder se forem alvo de alguma sanção americana.
A economia também pode jogar a favor da paz?
Sim, a reunião entre Biden e Xi foi muito positiva. Antes da invasão, a Rússia havia feito um acordo sem precedentes de parceira com a China. Mas os chineses são dúbios. Enquanto os presidentes conversavam, um dos porta-vozes da chancelaria chinesa criticava durante a ONU e a Otan. A China tem comércio de US$ 850 bilhões ao ano com a União Europeia e de US$ 750 bilhões com a Rússia, apesar das barreiras de Trump que Biden manteve. Para a Rússia, a China vende cerca de US$ 150 bilhões, sem contar que a economia chinesa é 10 vezes maior do que a russa. Os chineses não querem perder esses mercados. Têm muito a perder se forem alvo de alguma sanção americana.
Além da China, há dualidade no Brasil?
Nosso embaixador na ONU evitou cuidadosamente usar três palavras: invasão, guerra e sanções. Sem nominar a Rússia, falou em 'hostilidades', mas também em risco de 'escalada com consequências graves para toda a humanidade'. É forte. Assim como China, o Brasil mantém essa dualidade. O Itamaraty cometeu dois erros. Um, ficar contra o fornecimento de armas para a Ucrânia. São equipamentos defensivos, não ofensivos. Outro foi uma crítica excessivamente genérica a sanções. Estamos diante de uma situação inédita, excepcional. Foi atacado um país independente e soberano, caso em que se aplica a adoção de sanções. O correto seria, em um segundo momento, focar as críticas a sanções que atinjam alimentos ou meios de produzi-los, como o comércio de fertilizantes, porque é o que produz mais impacto na população mais pobre.
O Brasil tem uma dívida humana com a Ucrânia. Ucranianos estavam na primeira leva das migrações, em 1891, só dois anos depois da Proclamação da República.
O Brasil poderia fazer mais?
Está em discussão a retirada da Rússia do G20, da Organização Mundial do Comércio (OMC), até do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul). Não faz sentido tirar Rússia dessas organizações, até para não agudizar ainda mais a posição de Putin. Poderia haver uma suspensão temporária. A posição do Itamaraty poderia ser qualificada com críticas às barbaridades que a Rússia vem cometendo na Ucrânia, que já provocaram mais de 3 milhões de refugiados. O Brasil deveria deixar de lado a 'neutralidade' entre aspas. Não ficaram satisfeitos com as frases do presidente. Como manter neutralidade diante da violação de princípios sagrados da ONU e até da Constituição brasileira? Em alguns pontos, o Brasil está agindo de maneira correta, como ao pedir exceção de sanções a alimentos. Mas precisa emitir juízos mais críticas a Putin do que faz. O Brasil tem uma dívida humana com a Ucrânia. Ucranianos estavam na primeira leva das migrações, em 1891, só dois anos depois da Proclamação da República. Depois, vieram mais duas ondas, uma até o início da Primeira Guerra, outra entre as duas. A Ucrânia é um dos países que contribuíram para a formação da nação brasileira.
Além de adotar discurso mais duro, o que mais o Brasil poderia fazer?
O avião da FAB que trouxe brasileiros e ucranianos de lá levou alimentos, medicamentos e filtros de água. O Brasil poderia mandar essa ajuda de forma periódica. Levar não perecíveis, equipamentos de saúde, coisas úteis no país sob ataque. Se o Brasil mostrasse mais solidariedade à Ucrânia, pegaria bem aos olhos dos países ocidentais que já começam a entrar em atrito com Brasil por essa posição tão dúbia.