Ex-secretário do Tesouro Nacional e diretor de pesquisa econômica do ASA Investments, Carlos Kawall afirma que o uso de precatórios para financiar o programa Renda Cidadã pode, sim, ser chamado de pedalada, mas também de calote e até sequestro. Avalia que a melhor solução seria a retirada da proposta por parte do governo, mas se isso não ocorrer, haverá dificuldade de aprovação no Congresso e, em caso de surpresa no Parlamento, será brecado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Kawall e Gustavo Ribeiro, economista-chefe da ASA, encontraram um julgamento do STF sobre a emenda constitucional 62, que permitiu o adiamento do pagamentos nos Estados em que é caracterizada como "emenda do calote".
O financiamento da Renda Cidadã é uma pedalada?
É, mas é quase um eufemismo. A pedalada ocorre quando se transfere uma despesa obrigatória para o exercício seguinte. É óbvio que não tem sentido preciso. No impeachment de Dilma, virou rótulo para várias irregularidades que redundaram em crime de responsabilidade. Mas vai um pouco além. É o descumprimento de uma decisão judicial transitada em julgado. Hoje, todo precatório inscrito no primeiro semestre é incluído no orçamento do ano seguinte, e os do segundo semestre, para o ano posterior.
Faz sentido o governo dizer que está fazendo o mesmo que Estados e municípios, ao limitar o pagamento de precatórios a 2% da despesas correntes líquidas?
De jeito nenhum. Os Estados têm um problema muito antigo de não pagar precatórios, virou uma dívida que nunca é paga. Em 2009, foi aprovada a emenda constitucional 62, dando mais prazo a Estados e municípios. Como o prazo foi muito elevado, em 2013 o STF considerou essa emenda inconstitucional, por ferir cláusulas pétreas, incluindo o descumprimento de decisões de outro poder. Nas notas que encontramos da decisão do STF, os ministros acharam adequado chamar a 62 de "emenda do calote". Então, diante do fato de que várias pessoas, inclusive eu, termos dito que era calote, pelo que consta no relatório dessa decisão, estamos bem acompanhados no lado jurídico.
Como o líder do governo disse que não é calote, porque um dia vai devolver, pode-se comprar ao sequestro da poupança no governo Collor.
Há outra solução?
Podemos chamar a proposta por outro nome, sequestro. Como o líder do governo disse que não é calote, porque um dia vai devolver, pode-se comprar ao sequestro da poupança no governo Collor. É um sequestro do precatório. Grande parte dos precatórios vem do INSS, de aposentados, pensionistas. Em vez de buscar o ajuste por meio da redução real da despesa, o governo investe contra um grupo difuso de cidadãos. Deveria enfrentar o corporativismo dos funcionários públicos aprovando a PEC Emergencial ou a do Pacto Federativo, que permitem redução de jornada dos funcionários públicos. A reforma administrativa para os atuais servidores tem bastante apoio no Congresso. Deveria eliminar as férias de dois meses do Poder Judiciário, evitar que servidores ganhem acima do teto com penduricalhos, aumentos de salários retroativos. Vai afetar o aposentado que ganhou ação judicial, o pequeno empresário que questionou um tributo. E é um valor alto, de R$ 30 bilhões ao ano por algo que era direito das pessoas que lutaram por eles às vezes por décadas.
Há alguma sustentação para a proposta?
Aparentemente carece de base jurídica. A comparação com os Estados é completamente inadequada. O governo federal quer adotar como paradigma entes da federação que estão em situação falimentar. Esse argumento é o pior de todos. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que ainda está vigente, reza que quando se cria um programa ou gasto permanente, é preciso ter redução permanente de gasto e/ou aumento permanente de impostos. Essa medida que o governo está propondo meramente tenta burlar o teto de gastos, não cumpre o que a LRF exige. Como essa redução de gastos não vai ocorrer lá na frente, configura calote puro e simples. Todo mundo entendeu.
Do ponto de vista de responsabilidade fiscal, abre um precedente extremamente perigoso. Equivale a reconhecer dívida e dizer que não vai pagar.
O problema é o Renda Cidadã?
Isso é preciso deixar claro. É meritório criar um programa de renda básica, que realmente chegue aos mais pobres, cem entre cem especialistas em políticas sociais defendem isso há muito tempo. Mas como foi concebida, a medida é indefensável. Do ponto de vista de responsabilidade fiscal, abre um precedente extremamente perigoso. Equivale a reconhecer dívida e dizer que não vai pagar. É quase inacreditável que alguém leve esse tipo de argumento para debate. Causa indignação. Arrisco dizer que é pouco provável que prevalecerá. Se enviar ao Congresso, enfrentará resistência. Se o Congresso aprovar, vai ser derrubada no Supremo. Denota viés marcadamente populista do governo, que parece ter gostado do aumento de popularidade gerado pelo gasto emergencial.
O efeito será só no mercado?
Quando se assiste à queda sistemática da bolsa, à alta de taxas nos mercados futuros e à alta do risco Brasil, gera o que chamamos de aperto de condições financeiras. Criamos aqui no ASA Investments um índice que mede o estresse dos ativos financeiros. Quando em situação benigna, estimula a atividade econômica, quando negativo, tem efeito oposto, como agora. Desestimula investimentos. O nível de hoje é compatível com crescimento do PIB de apenas 1,2% em 2022, se as condições se mantivessem iguais. Se o governo insistir nessa linha de burla do teto de gastos e de irresponsabilidade fiscal, vai contratar desaceleração econômica frente ao que é esperado em 2021.