A tese central do mais recente livro do economista Eduardo Giannetti da Fonseca é de que os brasileiros, em vez de combater o famoso "complexo de vira-lata" – expressão do escritor Nélson Rodrigues para a baixa autoestima nacional –, deveriam abraçá-la. Isso não significa aceitar inferioridade, argumenta, mas celebrar a mistura, a falta de enquadramento em normas rígidas. Embora siga apoiando Marina Silva (Rede) na disputa à Presidência, Giannetti avisa não ser coordenador formal da área econômica, papel de André Lara Resende.
Dado o comportamento do mercado nos últimos dias, há risco de o vira-lata virar cão sarnento?
A única vantagem de ter vivido muito é que a gente já viu muita coisa. Vi o Brasil cair várias vezes no abismo. O Brasil se levanta de novo, não tenho a menor dúvida sobre isso. Toda crise, enquanto se desenvolve, é a pior de todas, porque não se sabe para onde vai. É como a turbulência em voo. Parece a coisa mais terrível do mundo, porque não se sabe como vai terminar. Depois, desagrava, vimos que passou. O Brasil vai se reerguer. Estamos passando por um momento muito difícil, mas temos conquistas importantes também.
Quais seriam?
Fizemos investigação, por meio da Lava-Jato, que revelou as entranhas do modo de fazer política no Brasil. É extremamente importante para nosso futuro, porque revelou de modo irreversível a deformação patrimonialista do Estado brasileiro. A existência de um patronato político que usa as prerrogativas do poder apenas para se manter nele. Tem projeto de poder, mas não de nação, entende que o poder é um patrimônio a ser preservado e perpetuado e usa de todos os meios para esse fim. Atravessa todos os partidos que ocuparam poder no Brasil. Essa descoberta é importante, é um processo de autoconhecimento doloroso, mas fundamental para o nosso futuro. Outra coisa que a Lava-Jato revelou, parte dessa deformação do Estado brasileiro, é a existência de segmentos muito relevantes do setor privado, do empresariado, que buscam, no acesso privilegiado nos governos, um atalho para o crescimento de seus negócios. Em vez de atuar dentro do que seria a regra do jogo, de uma economia de mercado, crescendo por meio de eficiência, inovação, criação de valor socialmente reconhecido, esses empresários tentam desesperadamente encontrar um modo facilitado de expandir seus negócios por meio de relações escusas com o setor público. Obtêm benesses, subsídios, crédito, proteção. Duas empresas privadas brasileiras incluíram o Estado brasileiro na sua folha de pagamento. É da conjunção desses dois elementos, o patronato político e o empresariado oportunista, que constitui a deformação patrimonialista do Estado brasileiro.
O fato dessas práticas persistirem depois de tudo o que foi exposto não é mau sinal?
Essa realidade aflorou de uma maneira irreversível. Tudo isso existia, e sabíamos muito pouco como era. Se existe, é melhor saber do que não saber. É como um câncer, se você está sendo consumido, nas suas entranhas, por uma moléstia que não sabe qual é, você vive muito mal e não consegue tratá-la. O que a Lava-Jato fez foi escancarar esta moléstia, escancarar a deformação patrimonialista do Estado brasileiro e torna nossa democracia, como dizia o Sérgio Buarque de Holanda, 'um lamentável mal-entendido'. Faz da nossa economia de mercado uma caricatura de economia de mercado, porque as empresas vitoriosas, com poucas exceções, não são as que inovam e são eficientes, que entregam ao consumidor a melhor combinação de preço e qualidade. São as que conseguiram fazer parte desse sistema de poder.
Tudo o que se viu nas últimas semanas significa que a paciência se esgotou?
O que julho de 2013 e a greve dos caminhoneiros, agora, revelam é que estamos caminhando para uma situação limite. Tenho, recorrentemente, a impressão de que o Brasil é um país que ainda não viveu o equivalente à Revolução Francesa e à americana, que tiveram como essência colocar o Estado a serviço da sociedade, não o contrário. Os governos brasileiros ainda agem como se a sociedade existisse para servi-los. Estamos com 34% da renda produzida pelo trabalho da sociedade drenada em impostos pelo governo. União, Estado e municípios gastam 6% a mais do PIB que arrecadam, é o déficit nominal. Portanto, estamos em um país em que 40% da renda é intermediada pelo setor público. A sociedade cobra contrapartida, justificadamente. Como é possível que 40% da renda nacional brasileira transite pelo setor público e quase metade dos domicílios do país não tenha sequer coleta de esgoto? Os indicadores de educação e saúde são deploráveis, a capacidade de investimento do setor público caiu de 1988 para cá. Ou seja, há alguma coisa profundamente errada nas finanças públicas. O investimento consolidado no setor público vem sendo de 2,5% nos últimos cinco anos. O Bolsa Família, principal programa assistencialista, relevante na vida de muitos brasileiros, é 0,5% do PIB. É a migalha que cai da mesa. O pano de fundo dessas manifestações é a indignação profunda da sociedade, é essa realidade. Os 40% do PIB que o Estado drena têm de retornar à sociedade em políticas públicas e em investimento em infraestrutura. Isso não está acontecendo no Brasil.
Isso quer dizer que temos de passar por uma revolução?
Não necessariamente uma revolução. Mas o lema do levante nos Estados Unidos _ 'no taxativo without representation' _ não poderia ser mais atual no Brasil hoje: 'Se não nos representam, não nos tributam'. Estamos caminhando para uma rebelião tributária, a democracia permite fazer correção de maneira não traumática, de maneira coordenada. Permite, a cada quatro anos, fazer a correção dos erros do passado. Agora, temo que, se não fizermos isso corretamente, com o melhor caminho democrático, que a situação enverede para algum tipo ruptura que ninguém deseja.
Há sinais de que o universo político percebe esse risco?
Os políticos parecem viver em um mundo de negação, alheio a realidade. Essa maluquice de reajustar derivado de petróleo todos os dias também revela a insensibilidade com a vida das pessoas comuns, é uma situação de alienamento. O caminhoneiro não sabe quanto vai estar o preço do diesel na hora em que entregar o frete contratado. É logico que tem de ter realismo tarifário, tem de prevalecer a realidade do mercado, mas não pode transmitir toda a volatilidade diária de mercados muito nervosos como o de petróleo e de câmbio para o bolso do consumidor, especialmente em um país como o Brasil. Fomos de um extremo ao outro. Primeiro, um intervencionismo de mão pesada no governo Dilma e, depois, fundamentalismo de mercado, que quer transformar cotação de derivados de petróleo em mercado financeiro. Tem de ter uma maneira de suavizar isso, média móvel trimestral, alguma maneira de você não tornar o mundo ainda mais difícil para quem tem uma vida tão complicada, como é o povo brasileiro. Imagina se o preço do pãozinho variasse todo dia de acordo com o trigo e o câmbio.
Como se aplica a esse momento a tese de seu livro mais recente, de que é preciso abraçar a vira-latice?
O mais importante é não confundir a circunstância da conjuntura com o permanente da cultura. Ser brasileiro e vira-lata é belo, precisa ser compreendido e valorizado. O verdadeiro complexo de vira-lata é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata. É disso que precisamos nos livrar. Misturar etnias, culturas a realidade do Brasil é um traço definidor, algo a ser valorizado e cultivado. É o que temos de melhor. Prefiro ser vira-lata do que poodle de madame ou dobermann da polícia. Essa é a mensagem central do ensaio.