Ele gosta de contar que era filho de alfaiate, nasceu em uma cidade de 2 mil habitantes no interior da Paraíba e começou a trabalhar antes dos 10 anos como descascador de caju e vendedor ambulante. Mas Maílson da Nóbrega é mais conhecido como ministro da Fazenda em período turbulento, janeiro de 1988 e março de 1990, final do governo Sarney, com o qual a gestão de Michel Temer começa a ser comparada.
Depois, ajudou a fundar uma das consultorias mais conhecidas do país, a Tendências, da qual se desvinculou em meados do ano passado. Admite que essa é a crise mais duradoura pela qual o país passou, mas assegura que sua situação no ministério era mais difícil. Em outubro, publicou seu novo livro, Economia: Como Evoluiu e Como Funciona, em que tenta aproximar o assunto do público não especializado.
Por que hoje temos de discutir sacrifícios?
Porque houve excessos, sobretudo na gestão Dilma Rousseff. Como qualquer enfermidade, e a economia está enferma, é preciso tratamento, às vezes de choque. O problema é que nós, brasileiros, achamos que é possível continuar gastando em saúde e educação mesmo que isso destrua as finanças do governo. Existe um conceito básico de economia, que vale para as famílias, chamado restrição orçamentária. Ou seja, uma família só pode gastar a soma da sua renda com sua capacidade de endividamento. Gastos com saúde, educação e programas sociais têm crescido desde a Constituição de 1988 de 6% a 7% ao ano acima da inflação. A economia crescia de 2% a 3%, e a arrecadação, de 3% a 4%. Não é preciso fazer nenhuma conta sofisticada para saber que isso dará errado.
Como convivemos até agora? É como se o gasto público e a economia estivessem em um trem de alta velocidade que vai bater na parede. O que fizemos nos últimos anos? Afastamos a parede, com mais tributação, mais dívida, mais inflação. Só que esses instrumentos se tornaram insuficientes. Temos duas saídas: ou deixamos o trem bater na parede ou paramos o trem. Na primeira opção, significa que as despesas terão de parar mesmo. O fato de ser uma despesa essencial, de natureza social, não elimina o limite. Ao deixar as despesas crescerem acima das possibilidades do país, prejudicamos os mais pobres. São os que mais perdem com a inflação. Isso nos levava a uma insolvência do setor público.
Em algum momento, o governo ficaria incapaz de pagar a dívida e cumprir compromissos com aposentados e funcionários públicos. Quem mais perderia são os de nível de renda mais baixo. Portanto, a PEC do teto dos gastos é uma ação a favor dos pobres, por mais que a esquerda brasileira, e particularmente o PT, não queira ou não entenda.
Leia outras entrevistas:
"A crise fortalece empresas melhor preparadas", afirma diretora da Bertolini
"Empresas sofrem o que fizeram no passado", avalia superintendente do IBGC
"A recessão terminará nos primeiros três meses de 2017", projeta economista
É o mesmo caso da Previdência?
O Brasil tem hoje o sistema de Previdência Social mais generoso do planeta. Não há nada parecido. O Brasil é o único país do mundo em que as pessoas se aposentam pelo INSS levando, em média, 80% do que ganhavam. O funcionário público, 100%. No mundo inteiro, existe a taxa de reposição. Varia entre 50% e 60%. Na Coreia do Sul, é 45%. As pessoas têm de se preparar ao longo da vida para conviver com a renda menor pós-aposentadoria, poupando mais para ter um complemento. Os demagogos se aproveitam do analfabetismo econômico da massa de brasileiros para dizer mentiras que satisfaçam aos objetivos de sua classe, seu partido, seu grupo. Por exemplo: confundir expectativa de vida ao nascer com expectativa de vida pós-aposentadoria. Quando o projeto estabelece que você deve se aposentar com 65 anos, leva em conta o quanto as pessoas vivem depois da aposentadoria. Aí os demagogos dizem que haverá gente com expectativa de vida de 70 anos e só terá cinco anos de aposentadoria. Ou que muitas pessoas morrerão antes.
O que é relevante para avaliar a viabilidade do sistema previdenciário é a expectativa de vida pós-aposentadoria. No Brasil, é semelhante à da Bélgica, de 19 a 21 anos, independentemente da região. Outra demagogia é dizer que essa é uma reforma contra os pobres. Os prejudicados são os ricos, porque conseguem se aposentar com menos de 65 anos por terem renda estável e contribuírem por 35 anos. O pobre já se aposenta aos 65 anos, por não conseguir provar 35 anos de contribuição. Finalmente, há debate sobre a necessidade de contribuir por 49 anos para ter 100% da aposentadoria. É assim em todo mundo.
A PEC está dizendo que a aposentadoria é só de 51%. Ou seja, a taxa de reposição, que é padrão mundial. Como a gente não está acostumado com isso, demos mais abono. A cada ano de contribuição, acrescentamos 1 ponto percentual a esses 51%. Se você contribuir 25 anos, vai se aposentar com 76%, muito acima da média mundial. O que está na cabeça do brasileiro é que ele deve se aposentar com 100% do salário. Isso não existe em canto nenhum do mundo. Depois da aposentadoria, você reduz seus gastos. Em todo mundo, há queda na renda quando as pessoas se aposentam, a não ser que tenham contribuído com um fundo de pensão. Realmente, é uma coisa difícil de vender porque impera uma mistura de desinformação, cultura e demagogia.
Aposentadoria no Brasil é tida quase como prêmio, e não como esforço. O Brasil tem gastos com Previdência de país rico e idoso. Vamos usar este ano 13% do PIB com Previdência nos setores públicos e privados. Na China, gasta-se 2%. Na Coreia do Sul, 1,5%. Nos países ricos, a média é entre 6% e 7%. Nos Estados Unidos, 6%. Estamos levando o país para o abismo. É preciso fazer a reforma.
E não se poderia fazer de maneira mais gradual?
Sim, desde que tivesse começado há 20 anos. O Fernando Henrique Cardoso tentou implantar a idade mínima, mas perdeu por um voto. Chegamos a uma situação de emergência. O PT levou 13 anos piorando esse quadro, mais do que duplicando o salário mínimo em termos reais, que é a base de três em cada quatro aposentadorias. É igual à situação do indivíduo que passou a vida inteira tomando pileque. Um dia, entra em coma e tem de ir para o hospital. Não há gradualismo no alcoolismo.
No Brasil, não temos mais como pensar em gradualismo. É tratamento de choque, ou o trem bate na parede. É uma pena porque as pessoas não se prepararam para isso. Não foi falta de aviso. A maioria dos analistas alertou para isso nos últimos 10 anos. Agora, não há mais jeito. A alternativa é o Brasil caminhar para o que foi a Grécia há três ou quatro anos. É a situação do Rio de Janeiro agora.
Ainda bem que o citado não foi o Rio Grande do Sul...
O Rio Grande do Sul é parecido. O Rio de Janeiro ficou fora de qualquer padrão, é uma mistura de irresponsabilidade, corporativismo e corrupção. O que o Rio Grande do Sul teve foi uma sucessão de governos irresponsáveis do ponto de vista fiscal. Como vários outros Estados, disfarçou essa realidade, burlou a lei de responsabilidade fiscal.
Pesquisas mostram o governo com baixa popularidade. É possível levar adiante agenda tão pesada nessa situação?
Não há saída. O paciente entrou em coma. É preciso levá-lo ao hospital e fazer a cirurgia. O presidente Temer escolheu a agenda mais premente e mais correta. A PEC do Teto, graças a Deus, foi aprovada. Deverá passar a idade mínima para aposentadoria. Temer irá ceder em muitos pontos. Isso significa que, daqui a 10 anos, teremos de fazer outra reforma. Se aguardarmos mais pela reforma, o sistema não ficará de pé de novo. As medidas trabalhistas estão na direção correta, mas são tímidas. O problema trabalhista é muito mais profundo. Não há saída para o presidente. O que também complica é que o governo é de transição.
Uma parcela expressiva dos brasileiros que não queria a Dilma não bate palmas para o Temer. Ele era da mesma chapa e trabalhou no mesmo projeto. Por outro lado, é normal que isso aconteça em qualquer país. Quando a situação social se deteriora, com desemprego e perda de renda, as pessoas não se conformam. Tendem a culpar quem está no poder. O Temer perdeu a oportunidade de mostrar à nação o estado em que encontrou o país. Teria de fazer isso e mostrar o quanto a desastrada gestão de Dilma, (ex-ministro da Fazenda) Guido Mantega e (ex-secretário do Tesouro) Arno Augustin arrasou o país. O efeito é devastador. Como não fez isso, corre o risco de ver o PT, que é muito competente nesta questão, dizer que a culpa é dele, Temer.
A economia teve "despiora" no ano, mas "repiorou". Qual foi a causa?
Todos os analistas, inclusive eu, olhamos para experiências do passado. Nas recessões, a recuperação da confiança costuma ser o primeiro passo para restaurar um ritmo satisfatório de crescimento. Todos os indicadores apontavam para ganho de confiança do consumidor e do empresário. Por outro lado, muita gente analisou, de maneira correta, que estava se esgotando um ciclo de estoques. Quando há baixas, as empresas começam a fazer encomendas de novo. O ciclo recomeça.
O que se constata hoje é que, mesmo com a recuperação da economia, o nível de endividamento das famílias e empresas é um inibidor que anula o pouco a ser feito. Os bancos se tornam mais conservadores. As famílias e as empresas se tornam mais prudentes em relação ao endividamento. As empresas priorizam a gestão do caixa, deixam investimentos para depois que a situação estiver clara de recuperação. No fundo, o Brasil vive crise de crédito. Não vive crise bancária. Existe crise de crédito, que envolve demanda e oferta. O Banco Central vem mostrando que o estoque de crédito está diminuindo. As pessoas buscam menos, e os bancos oferecem menos. É a principal explicação para a não confirmação das expectativas de melhora.
Há como sair desse cenário?
Acho que tem. O problema é que, assim como em uma grave enfermidade, leva tempo. Nós, brasileiros, desenvolvemos uma cultura segundo a qual o crescimento econômico é uma questão de vontade política. Não é verdade. O crescimento resulta de um vasto complexo de causas, que incluem qualidade de educação, do sistema tributário, da legislação trabalhista, da infraestrutura, da logística, da produtividade, do ambiente de negócios. Todo esse complexo está deteriorado. A legislação trabalhista piorou, o sistema tributário é um caos completo, o ambiente de negócios piorou. A corrupção foi um câncer que agravou a situação. Mas há parte dos políticos e empresários que acha que, se o governo quiser, o país voltará a crescer.
O enfermo está em coma, mas querem que ele receba uma injeção e corra uma maratona. A equipe econômica, que há anos não era tão competente, sabe que injeção na veia não recupera a economia. O cardápio que estão demandando foi usado e deu errado. Cresceu a inadimplência nos bancos. Há gente querendo usar reservas internacionais para fazer investimentos, é maluquice. Há gente na indústria querendo baixar o juro na marra. A Dilma mandou baixá-lo na marra, e deu errado.
A cultura de que se pode fazer tudo o que quiser é tão profunda que as pessoas não se lembram do que deu errado. A equipe econômica tem de lidar com essa situação. Daqui a pouco, começará acusação de ser um grupo de uma nota só, que só sabe falar em ajuste fiscal. É como chegar ao médico e dizer que ele só pensa em remédios e exames. Mas é isso mesmo. É preciso salvar o paciente.
As medida recentes fazem diferença?
Foram liberados R$ 30 bilhões do FGTS. Não irá tudo para o consumo. O consumo total no Brasil fica perto de R$ 4 trilhões. Mas é claro que haverá efeito. Ajuda a desfazer o nó do calote, mas não resolve. E dá a ideia de que o governo não está parado. São medidas corretas. Esses momentos são aproveitados para mudar coisas que, por analfabetismo econômico, não eram mudadas. No Brasil, por exemplo, instituiu-se uma estupidez, defendida pelo Procon, de que pagamento à vista e a prazo devem ser o mesmo. A mudança é correta. Tocar na legislação trabalhista é correta. A questão do crédito, dependendo da direção, está correta. Mas são aspirinas. Podem contribuir para diminuir a dor de cabeça.
Mas não tenhamos dúvidas, daqui a três ou quatros meses, com a economia sem reação, e não vai reagir ao que tudo indica, voltará essa onda. E essa onda começará a minar a confiança no ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Já há pressão agora, mas Temer comprou a história da equipe econômica. Então, o presidente é uma barreira a esse risco de usar artifícios para dar ilusão de que recuperaria a economia. Os sinais de recuperação da economia, ao que tudo indica, virão a partir do segundo trimestre de 2017. Até lá, o ministro da Fazenda sofrerá pressão, inclusive da classe política, que passa a agir por conta de seu interesse eleitoral político e específico. Daqui a pouco, o ciclo íntimo do presidente começa a se incomodar porque a popularidade não se recupera, e pode piorar. Aí o presidente começa a ouvir empresários que dizem que a equipe econômica só pensa em banco e juro.
O presidente precisa ter muita convicção para não embarcar nessas lorotas. O empresário que está vendo isso está vendo sua empresa, e não o país. Mas acho que, com o passar do tempo, vai ficando claro para o presidente que o custo de demitir o ministro da Fazendo é maior do que o suposto apoio político. O ministro vira aquele boneco joão-bobo, que nunca cai. Isso já aconteceu outras vezes no Brasil. O presidente precisa de muita paciência para resistir a atalhos que podem destruir o mínimo de recuperação que já está ocorrendo. Há setores vendendo mais.
Quais?
A indústria automobilística cresceu um pouquinho em novembro. O ciclo de estoques está se esgotando. Muitas empresas vão começar a repor estoques. Os sinais mais claros de recuperação virão entre o primeiro e o segundo trimestres, com mais força no segundo. O último indicador a ter recuperação será o emprego, infelizmente. Só terá retomada com volta do ciclo de investimento.
A recuperação vai ser mais para preenchimento de capacidade ociosa. Podemos estar caminhando para vermos, em meados de 2017, 13 milhões de desempregados, o que é terrível, recorde no Brasil. Isso terá impacto sobre a popularidade do presidente e exigirá ainda mais convicção. Mas há saída. Apesar de tudo, está em melhor situação do que estava quando eu era ministro. Muito melhor.
Por que aquela época era pior?
A crise que vivemos hoje é a mais longa em mais de um século. O que digo é que as condições de ambiente quando eu era ministro eram muito piores. Tínhamos inflação sem saída, era hiperinflação. Preços aumentando. O país estava em moratória de dívida externa, era fechado. Estava em transição para a democracia, as instituições estavam se fortalecendo. O sistema financeiro era muito frágil. O agronegócio era da época do Jeca Tatu.
Hoje, o Brasil tem instituições sólidas, democracia consolidada. A inflação está caindo. O sistema financeiro é sofisticado, bem regulado, o mais sólido entre os países emergentes. A imprensa é livre e consolidada. Os mercados funcionam. As contas externas estão sadias. O Brasil é credor externo, tem mais reservas do que deve. Tem câmbio flutuante e enorme inovação. Tem acesso a mercados internacionais de capital. As empresas estão abrindo seu capital. Os investidores vêm aqui comprar papéis do Tesouro e das empresas.
O que temos é crise econômica séria. Mas não é a crise política mais séria. Crise política pior é aquela sem solução. A crise política de 1964 não teve solução, porque não havia instituições fortes como as de hoje. Na época, qual foi a saída? Uma ruptura. Hoje, o risco de isso acontecer é zero. Como diz FHC, no passado lembrávamos os nomes dos generais. Hoje, lembramos os nomes dos juízes. Está em curso a mais ampla e promissora operação de combate à corrupção.
Os brasileiros mudaram a cabeça. No meu tempo, brasileiros pensavam que a inflação tinha papel no desenvolvimento. Os brasileiros se tornaram intolerantes à corrupção. É outro país, mais maduro, dinâmico e robusto com um monte de problemas para resolver. O Brasil dá certo. Ultrapassamos linha divisória. Dificilmente voltaremos à hiperinflação e à ditadura.