Chefe do Centro de Crescimento Econômico do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e professor da pós-graduação de Economia na USP, Samuel Pessôa é filiado ao PSBD, mas costumava elogiar programas dos governos petistas até a eleição de 2014. Ainda considera legítimas algumas das iniciativas, mas pondera que legitimidade não dá orçamento. Adverte que, sem correção de rumo, o Brasil do futuro será o Rio Grande do Sul de hoje.
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Por que o Brasil precisa limitar seus gastos?
Temos uma dívida pública explosiva. Se continuar nessa trajetória, a inflação volta, como ís aos anos 1980, 1990. Para arrumar as contas públicas, a gente pode atacar pelo gasto ou pela receita. Começamos pelo gasto porque é onde está o desequilíbrio. Nos últimos 25 anos, o gasto cresceu a uma velocidade equivalente ao dobro do crescimento da economia. Entre 1998 e 2010, o mesmo aconteceu com a receita. Apesar de ser tudo meio maluco, como receita e gasto cresciam o dobro da economia, as contas estavam equilibradas. De 2010 para cá, a receita cresceu no mesmo ritmo, não teve um desastre. No primeiro mandato da presidente Dilma, a economia cresceu em média 2,2%, a receita cresceu 2,5%. O problema é que a despesa continuou crescendo %. Então, se a gente não atacar primeiro a fonte do desequilíbiro, que é crescimento sistemático do gasto, acima do crescimento da economia, não tem ajuste de receita que resolva. Se der aumento de carga tributária neste ano, alivia, mas como o gasto vai continuar crescente, em dois ou três anos o alívio temporário dado pelo aumento da receita vai deixar de existir. Voltamos à situação de hoje, ou um pouco pior porque a carga tributária vai estar mais alta. Em dois ou três anos, pode haver outro aumento de carga tributária. O problema é que será preciso continuar fazendo isso, com uma carga tributária que já é alta. Há um limite para isso. Se não resolver a fonte do problema, que é o crescimento explosivo dos gastos públicos, não mexe nas expectativas das pessoas para que voltem a confiar no país e voltem a investir, para que o país volte a crescer.
O teto é sobre as despesas primárias, não inclui dívida e juro. Os críticos estão certos ao dizer que o governo quer cortar gastos com saúde e educação para pagar dívida e juro a banqueiro?
Mesmo que fosse assim, não teria jeito. Tem diferença entre gasto primário e gasto com juro. O gasto primário é decidido pelo Congresso e pelo governo a partir de regras. O governo decide dar aumento de salário a partir de uma lei. O juro é decidido pelo mercado. Se o governo quiser reduzir juro unilateralmente, a inflação volta. Foi o que fizemos em agosto de 2012. O Banco Central começou a baixar o juro, surpreendeu o mercado, porque a inflação estava meio alta, e levou a taxa básica a 7,25%. Até que apareceu a inflação do tomate, em março de 2013, precursora daquele mal-estar que acabou desaguando nas manifestações de outono de 2013, e o BC teve de subir juro. Se olhar a série histórica, a primeira perda de popularidade da presidente Dilma ocorreu quando aumentou a inflação, no primeiro trimestre de 2013. Não tem jeito de baixar juro. É como chegar no banco e dizer quanto o banco vai cobrar de você. Não é assim que funciona. A alternativa para não pagar o juro seria dar calote na dívida. O Brasil deu vários nos anos 1980 e 1990. Não deram bons resultados. E até dar calote, agora, seria difícil. O governo hoje não consegue nem pagar as contas primárias, temos déficit primário. Hoje, tem de se financiar não só para pagar juro e o principal, mas para pagar gastos correntes. Se der calote, ninguém vai emprestar e vai ficar sem dinheiro para pagar saúde e educação. Está usando recursos emprestados para pagar o básico. É como uma família em situação dramática que se financia no banco para pagar a comida. Se dar calote no banco, perde o dinheiro com que compra a comida.
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Não são alarmantes algumas projeções sobre perdas na saúde e no salário mínimo com o teto dos gastos?
Essas contas são doidas. Se o teto estivesse entrado há 15 anos, durante cinco ou seis anos o salário mínimo teria crescido menos, mas o crescimento econômico teria sido tão grande, o juro estaria tão baixo e o superávit primário seria tão alto que o Congresso mudaria tudo e o gasto com saúde e educação seria muito maior do que é hoje. As pessoas acham que a trajetória do gasto público e da carga tributária não sensibiliza o crescimento econômico. A gente só está tendo de fazer essa mudança porque chegou a limite. A economia estagnou, está com problema de produtividade dramático, porque a gente gastou todo nosso orçamento com custeio e transferências. Muitas são legítimimas, mas o fato de o gasto ser legítimo não significa que tenha orçamento. Se não fizer o teto, o gasto será menor do que com a PEC, porque organiza a economia. Vai gerar ordenamento, maior crescimento e vai poder mudar lá na frente. Se não tiver a PEC, vamos voltar aos anos 1980. Vocês aí no RS estão sentido isso. O Estado está desorganizado. O Estado não tem dinheiro para pagar policial e a criminalidade está aumentando. Quando acaba o dinheiro, acaba o dinheiro. O dinheiro acabou no RS e no Rio. Em mais três ou quatro anos, vai acabar no Brasil todo. E na União, o que acontece quando acaba o dinheiro? Vem a inflação. Tem um impacto de desorganização da atividade econômica parecido com o que está acontecendo no Rio e no RS. Vejo as pessoas falando, e parece que as pessoas não lembram do que aconteceu nos anos 1980 e 1990. Acho todo mundo meio maluco.
Por que é necessário um prazo tão longo, de 20 anos?
Não são 20, são 10.
Como assim?
A PEC prevê que, em 10 anos, pode-se mudar a regra por lei complementar, por iniciativa do Executivo, que requer maioria absoluta (maioria do número total de parlamentares, não só dos presentes) em turno único na Câmara e no Senado. Há uma previsão de 20 anos para o caso de tudo dar errado. A situação está tão catastrófica que a chance de não dar tudo absolutamente muito certo é grande. Se tudo der certo, em 10 anos o país atinge superávit primário de 3,5% do PIB, e a gente vai precisar desse superávit durante alguns anos para reduzir a dívida pública. Se tudo der certo demais, a economia bombar, a receita bombar, e em seis anos, tivermos um monte de dinheiro para gastar com saúde e educação e a PEC não deixa? Não tem problema. Usamos o dinheiro para refazer o pacto federativo, aumenta as transferências da União para Estados e municípios. O grosso de saúde e educação é estadual e municipal.
Ou fazer uma nova PEC...
Aumentar gasto no Congresso não é uma coisa difícil. Se a situação ficar boa, todo mundo aprova e a gente aumenta o gasto.
O que fica fora da PEC, fora dívida e juro?
A PEC trava a soma dos gastos primários. Estão fora transferências da União para Estados compensando gastos per capita com Fundeb. Também estão excluídos os repasses constitucionais, o Fundo de Participação dos Estados e do Municípios. E ainda uma compensação que União faz para Estados com gastos muito baixo com educação. Então, quando se fala em gastos com educação limitados pela PEC, basicamente estamos falando em educação superior pública e escolas técnicas federais. O Prouni não é gasto, é renúncia fiscal, então não está na PEC. O Fies é despesas financeira, também está fora.
Pode faltar dinheiro para educação superior pública e escolas técnicas federais?
O que vai acontecer é que a soma dos gastos vai ter de crescer com a inflação durante 10 anos. E se não fizermos reforma previdenciária e o gasto crescer e exceder limite? Aí o governo não pode dar subsídio, dar aumento de salário, contratar.
O Brasil vai ter de repensar educação superior e técnica públicas?
Não, vamos ter de achar maneiras de tornar o Estado brasileiro mais eficiente.
No dia seguinte à aprovação da PEC, surgiu a informação de que deputados e senadores devem entrar no regime geral de Previdência. Vai aumentar a pressão para limitar privilégios para que a sociedade aceite medidas impopulares?
Espero que venha junto da reforma da Previdência. Não para ferrar os políticos, mas para não criar uma casta privilegiada. Política é uma atividade importante, tem de ser valorizada, mas não se pode criar privilégios. É preciso pensar em institucionalizar essa carreira. Com um fundo de pensão, contribuição, se mudar de profissão pode fazer portabilidade. Como os demais profissionais. Que não onere demais o Tesouro, mas que crie condições para que pessoas de bem possam ter como objetivo atuarem na política e terem uma vida digna.
Como vê a avaliação de especialistas em saúde publica que dizem que a PEC parte do princípio de que o Brasil já gasta muito no setor, o que não seria verdade?
Isso vale para todas as áreas. Todo mundo acha que se gasta pouco. Houve um tratamento especial para a saúde na última redação da PEC. A lei diz que a União tem de gastar 15% da receita corrente líquida em 2020. Em 2017, seria 13,7%. A PEC pegou o limite de 15% para 2020 e fez valer a partir de 2017. Deu um ganho adicional de R$ 10 bilhões para a saúde e a correção monetária para os próximos nove anos vai se aplicar sobre esse valor, que só seria atingido daqui a três anos. Então a saúde teve tratamento especial. E sempre, se a situação melhorar muito, a União pode transferir mais recursos para Estados e municípios.
A PEC sozinha dá conta do recado de reequilibrar as contas?
É preciso muito mais medidas. Uma das mais importantes é a reforma previdenciária, o próximo ponto na agenda. E tem um tema duríssimo, mas que está vindo com força, que vamos ter de tratar, que é o desequilíbrio da Previdência de Estados e municípios. O RS só está alguns anos na frente do país, não é diferente do resto do país...
Preferiríamos não estar na frente nessa questão...
(risos) É verdade, mas o resto do país é igual ao RS. Se nada for feito, o que o RS vive hoje o Brasil viverá em três anos. E o que está por trás e vai afetar todo mundo, é um regime de previdência do servidor público absolutamente impossível de ser financiado. As carreiras dos servidores públicos do Estado são as que têm aposentadoria especial, com 25 anos. Para cada contracheque de coronel da PM, quantos contracheques de aposentados se paga? Deve ser um para 30. Com essa proporção, nenhum sistema previdenciário para de pé. Vai ser muito doloroso, vai dar muito problema, mas policiais, professores e bombeiros vão ter de trabalhar mais para se aposentar. E vai ser uma transição rápida. Tem gente que acha que vai se aposentar mais cedo e vai ter de trabalhar mais. Se não fizer isso, não vai ter dinheiro.
O problema da previdência pública é mais grave do que o privado?
É preciso diferenciar a União de Estados e municípios. O regime próprio dos servidores públicos da União é caro, mas relativamente estável. O desequilíbrio previdenciário na União está no INSS e na aposentadoria rural. Nos Estados e municípios, o regime é explosivo. A diferença é que os servidores da União não estão nas carreiras com aposentadoria especial de 25 anos.