Ana Cândida Carvalho, sócia na área de infraestrutura da TozziniFreire Advogados, vem acompanhando passo a passo a evolução das tratativas em torno das regras para a concessão dos quatro aeroportos – Porto Alegre, Florianópolis, Salvador e Fortaleza. Nessa condição, a advogada afirma que há, sim, demanda, com movimentação significativa de operadores em torno dos futuros leilões. Em que prazo, frisa Ana Cândida, é um "chute", mas ela não acredita que seja possível fazer a oferta antes de meados de 2017. Até agora, foram mapeados ao menos sete interessados – a Vinci, as alemãs Avialliance (ex-Hochtief) e Fraport (operadora do aeroporto de Frankfurt), a espanhola Ferrovial, a argentina Corporación América e as brasileiras CCR e CR Almeida, associadas a grupos internacionais.
O leilão atrairá grupos estrangeiros, já que empresas nacionais enfrentam dificuldades financeiras?
Desde que o país iniciou as rodadas de concessões, há a exigência de um operador aeroportuário. Até o início, como havia apenas a Infraero, isso significou, ao longo das três rodadas já passadas, que havia necessidade de um operador estrangeiro compondo os consórcios. Existiu uma exigência de outro perfil em termos de qualificação técnica. Portanto, consórcios se formaram entre os operadores estrangeiros e as construtoras nacionais. O que há de diferente agora é que, em razão do histórico recente, da questão financeira e do envolvimento das construtoras na Lava-Jato, uma dificuldade dos operadores estrangeiros de celebrarem parcerias com empresas locais.
Isso pode prejudicar os leilões?
Não acredito. Até porque muitos dos estrangeiros que estão olhando esse projeto estão analisando pela primeira vez aeroportos no Brasil. Outros já têm experiências de rodadas passadas. Uma das interessadas conhecidas, a Ferrovial, participou de rodadas anteriores. A curva de aprendizado dela sobre o processo e qual é a legislação do contrato, de certa forma, já passou.
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Por que o prazo de concessão do Salgado Filho é de 25 anos, e o dos demais é de 30 anos?
Esse processo surge de um estudo de viabilidade técnica e econômica, que projeta o prazo de concessão a partir dos dados levantados. As análises foram submetidas para o Tribunal de Contas da União (TCU) para a validação da concessão antes de o edital ser publicado para consulta pública. Os prazos se justificariam a partir dos estudos. É o tempo de exploração que seria necessário para recuperação do investimento de cada concessionária.
Então, em Porto Alegre, há previsão de um fluxo maior de passageiros?
É isso.
Quais são os principais etapas?
Há fases de entrada em operação pela concessionária. Quando o contrato é assinado, a concessionária primeiro assiste à operação da Infraero. Em seguida, assume a operação, auxiliada por dados da Infraero. Somente depois assume o comando. A duração dessas fases é diferente para cada aeroporto. Há diferenças, inclusive para processos de licenciamento e de exigências de obras, por exemplo. Isso foi muito questionado na fase de consulta pública, pelas questões de responsabilidade, dependendo de quando a operação é assumida e do momento em que os investimentos têm que ser feitos. Existe uma série de consequências jurídicas decorrentes dos prazos. Era isso que a Agência Nacional de Avião Civil (Anac) tentava justificar, já que cada aeroporto tem uma realidade distinta. Alguns dos processos, como ampliação de pista, já estavam em andamento em termos de projeto. Algumas ações foram tomadas em certos casos. Em outros, não.
O que ainda pode mudar nas regras?
As demandas são muitas. Por exemplo, a discussão para saber se quem participa do leilão pode vencer a disputa pelos quatro aeroportos ou só dois, um em cada região, como dita a regra atual. Existe também uma demanda pela definição de área de influência de cada um deles.
As empresas não aceitam restrição?
Sim, ou que a área de influência seja menor. Existe, inclusive, uma discussão em relação a Porto Alegre, porque o Salgado Filho estaria na área de influência dos aeroportos de Ezeiza e Aeroparque, na Argentina. A consequência dessa discussão seria de demanda, porque o fluxo projetado pode não se confirmar se houver uma atração de tráfego, especialmente de carga, pelos argentinos.
O que é risco de demanda?
Em linhas gerais, a concessão é uma operação por conta e risco, em linguagem mais informal. O concessionário assume os riscos do negócio durante o prazo em que ele se compromete a operar. Como contrapartida, tem direito ao reequilíbrio econômico do contrato sempre que um evento não previsto ocorrer. O problema é que o reequilíbrio está limitado a situações específicas.
Aí entram questões de fluxo de passageiros e área de influência, por exemplo?Isso. Hoje há uma diminuição de fluxo, pela crise econômica ou por outros fatores. Logo, as concessionárias têm diminuição na receita.
A receita vem da taxa aeroportuária e dos aluguéis?
As receitas comerciais são rendimentos bem significativos, mas que estão muito ligados a fluxo. Se há menos passageiros, cai o interesse por essas áreas, porque o consumo diminui, as lojas começam a querer renegociar ou romper contratos. A concessionária também tem receitas acessórias, como exploração do estacionamento. Não existe um mecanismo contratual previsto que alivie o risco do concessionário. Essa é uma das grandes discussões. A demanda pelos aeroportos é a base de toda a viabilidade de concessão.
O lance mínimo para o Salgado Filho está em R$ 729 milhões, e se prevê investimento de R$ 1,6 bilhão para construção da pista?
A pista e uma série de investimentos menores. Há investimentos de sinalização interna, por exemplo. Mas, claro, são incomparáveis com o da pista.
O pagamento de 25% do valor da outorga na assinatura do contrato não é usual? Pode fazer com que os lances sejam menores?
A exigência do pagamento é nova nesse processo. Nas concessões anteriores, não foi exigido. Era diluído pelos meses de operação ao longo de todos os anos de contrato. O pagamento de 25% do valor da outorga é uma exigência do momento atual do país, em que o governo precisa de caixa. Pode ter um impacto no valor total dos lances. A captação desse dinheiro pelos investidores para o pagamento imediato pode ser dificultada, pensando que esse processo historicamente contou com apoio significativo do BNDES. Sabemos que o banco não liberou o empréstimo de longo prazo para a concessionária do aeroporto RIOgaleão. Além disso, em relação ao mercado financeiro, discute-se como captar os recursos atualmente, com qual taxa, quem teria capacidade de obtê-los imediatamente.
Há investidores no mercado financeiro que se financiam no Exterior a taxas baixas e investem no Brasil. Para o leilão, poderiam fazer o mesmo, já que o juro está baixo em outros países?
Os investidores podem fazer isso. Não há restrição, mas a proposta de outorga sempre é feita em reais, e pode haver risco de variação cambial. Na medida em que o investidor faz isso, pode existir impacto futuro no custo do financiamento.
Há algum mecanismo para proteger o investidor desse risco? Um hedge aumentaria o custo?
A grande solução seria mudar a legislação para que os contratos pudessem ser em moeda estrangeira. Mas é claro que há grandes implicações. E não vislumbramos que isso ocorra.
A grande diferença para um investimento no mercado financeiro é que ele é de curto prazo, e a variação cambial não é um tema tão complexo a ser resolvido?
Sim. No financiamento de longo prazo, a exposição é muito maior. A recuperação desse recurso, via financiamento, demora muito mais para acontecer.
Há alguma previsão de quanto será o ágio no leilão?
Não (risos). Um dos grandes esforços em termos de credibilidade do processo atual é como o governo propõe a formatação em um momento em que enfrenta discussões com todas as concessionárias existentes. Se a situação das atuais estivesse muito boa, enfrentaríamos todos esses debates. Como está muito ruim, como o governo estabelece a credibilidade do processo com nossos exemplos históricos? Esse é o ponto mais sensível no momento: o que deu errado nas concessões anteriores para que as concessionárias chegassem a tal situação. Uma das alternativas para isso sinaliza que o ágio registrado anteriormente tenha sido muito alto, superestimando o valor das outorgas.
A causa seria a projeção de fluxo, que não se confirmou, ou problemas internos?Um exemplo de problema que não tem a ver com o fluxo de passageiros é a liberação de recursos via BNDES. O banco não dá nenhuma garantia para financiamento, mas há um processo que em tese é conhecido pelos investidores. No momento em que o contrato é assinado, a concessionária inicia formalmente o processo de pleito do financiamento. Tem um prazo para correr, mas não conheço o projeto para saber se a demora em liberação dos recursos pelo BNDES tem ou não a ver com a situação financeira da concessionária. De certa forma, é um agente externo com o qual a concessionária conta, e que tem um impacto muito grande também na situação financeira dela. Até chegar ao momento em que o BNDES libera o financiamento de longo prazo, é feito um empréstimo ponte, com juros muito mais altos do que os do TJLP, que o banco usa em contratos de longo prazo. Enquanto o longo prazo não sai, a concessionária fica renovando esse empréstimo de curto prazo. O custo é muito alto se ela não havia estimado o prazo para liberação.
Pode haver alteração no valor de outorga dos aeroportos?
Depende. Existe uma demanda dos interessados, em alguns casos, de que sejam atualizados os estudos de viabilidade. Se isso ocorrer, poderá haver alterações nos valores de outorga. Com o resultado do processo de consulta pública, não vislumbro mudança. Porque, entre consulta pública e publicação do edital, é difícil haver uma alteração tão significativa que mexa nas premissas. Até porque, se existir mudança, em tese, os estudos teriam que ser reavaliados.
Todo o processo teria que começar outra vez?
Sim.
Existe algum risco de haver um leilão vazio, sem interessados?
Não saberia dizer. Acho que dependerá do edital na fase de licitação. Neste momento, está claro que a Anac está trabalhando em pontos muito reforçados durante as audiências públicas.
O que pode ser revisto para garantir os interessados?
Os grupos estrangeiros interessados já estudam os projetos há algum tempo e fizeram investimentos no sentido de colocar contribuições. Então, em tese, estão participando. O que faria com que parassem de estudar o projeto e desistissem do leilão tem a ver com o perfil de cada um deles. Talvez o fato de estarem aqui já demonstra um apetite pelo risco de não haver alteração. Temos perfis muito diferentes de empresas. Alguns pontos são comuns, mas vários, particulares.
O Brasil precisa sair dependência do BNDES?
É uma ótima discussão. Comparando o nosso modelo com o internacional, faz sentido sair. Mas para isso também precisamos de uma mudança na mentalidade do governo na formatação dos projetos. Sempre houve foco em avaliá-los do ponto de vista da taxa de retorno. O governo deveria estar mais interessado em encontrar quem assuma a operação e preste o melhor serviço possível do que ficar verificando quanto a empresa ganhará com a operação. Isso não deveria ser o foco.
Fixar taxa de retorno não é discussão vencida?
Não, vamos demorar para superar esse modelo.
É possível projetar data para o leilão?
Qualquer opinião seria um chute (risos). Acho difícil a realização do leilão em 2016. Talvez em meados de 2017, no melhor dos cenários.
Quais são as próximas etapas?
A consulta pública já foi encerrada. A Anac está avaliando o que foi recebido. O próximo passo é a publicação pela agência do relatório de análise de contribuições. Historicamente, esse relatório foi lançado muito próximo da data da publicação do edital final. Ouvimos nos últimos meses um boato de que o governo estaria reavaliando a concessão à luz de um debate sobre um novo modelo de concessão, que contemplaria também outros aeroportos. Não vejo isso acontecendo. Se a discussão fosse adiante, teria que começar outro projeto.