Você lembra da música Refazenda de Gilberto Gil? "Abacateiro acataremos teu ato, nós também somos do mato, como o pato e o leão. Aguardaremos, brincaremos no regato até que nos tragam frutos teu amor, teu coração.” Segue numa batida nonsense, passando por colagem de partes de versos: “Saiba que na refazenda, tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar.” E termina de inopino com: "Guabiroba".
Como algo tão descosturado está no imaginário de tantas pessoas? Claro, há uma doçura melódica, como em todas as outras canções do autor. Mas o que significa esta letra, cujo título é um neologismo enigmático? A chave está em que a aquisição da linguagem passa por fases. Esta letra apela e faz sentido para um momento intermediário esquecido. Quando a criança já domina diálogos simples, mas não entende o que seus adultos falam entre si. É quando ela pesca fragmentos da conversa e o resto lhe parece um blá blá blá rítmico. Refazenda nos captura porque fala para a criança, encantada com a sonoridade misteriosa das palavras, que habita o adulto.
As crianças também gostam dessa música. Soube de uma professora que introduziu Refazenda como sinal da hora do lanche. As crianças são ritualísticas, gostam que seus momentos sejam marcados por canções. Elas geralmente estão dispersas, então atendem melhor ao chamado de uma música, que previamente significa um novo momento, do que a um comando. Tente mandar as crianças pararem de brincar e guardarem seus brinquedos. Veja se não é mais efetivo cantar: - guarda, guarda bem direitinho…
Júlia, minha caçula, era especialmente rebelde para escovar os dentes. Eu lhe expliquei que os dentes podem ser atacados. As cáries são como os cupins, uma referência que ela conhecia. Não adiantou. Então, nem sei como, inventei uma música com o tema cupim. Pegava a escova cantando a ópera dos cupins. Pelos meus dotes musicais, garanto-lhes, não era grande coisa. Mas funcionava, ela vinha diligente e entusiasmada para a escovação.
A infância das minhas filhas foi marcada pelas músicas do Castelo Rá-Tim-Bum, programa da TV Cultura. Não havia banho sem a cantoria do: Banho É Bom. A música de escovar os dentes era bem melhor que a minha. As letras grudavam, às vezes vou lavar as mãos e ainda escuto a musiquinha Lava Uma Mão. Havia o Rap da Reciclagem, a Música dos Dedos ensinava rudimentos de matemática, Passarinho, Que Som É Esse? Introduzia os instrumentos musicais.
Enfim, as crianças habitam a Refazenda, a musicalidade da palavra chega antes do sentido. Quem não perdeu a magia dessa fase, para nossa sorte, vira poeta, músico. O musical, enquanto gênero, é a tônica na infância. Portanto, cante para suas crianças. Isso melhora o contato com os pequenos, estimula a linguagem, e ainda facilita sua vida.