Há livros fundamentais que deveríamos ter lido há décadas e que, por alguma razão, nos escapam. Então, inesperadamente, aparecem à altura dos olhos em uma estante, como um convite. Ocorreu comigo em dezembro com A Guerra do Fim do Mundo, romance histórico sobre Canudos de Mário Vargas Llosa. O livro, lançado em 1981, é considerado por Llosa como seu trabalho mais importante. O texto ficcional está baseado em extensa pesquisa histórica e em viagem que o autor fez ao sertão da Bahia, visitando os locais por onde passou o beato Antônio Conselheiro. O autor foi, também, influenciado por Os Sertões de Euclides da Cunha, livro que reverencia. O resultado foi um enredo inovador cuja lógica interna se impõe como uma descrição ao mesmo tempo fantástica e realista dos acontecimentos.
Penso que o texto oferece, também, elementos centrais para melhor se compreender o Brasil. Um deles, o extraordinário distanciamento entre o Estado e o povo, característica que costuma legitimar a violência institucional. O romance foi ambientado ao final do século 19, nos primeiros anos após a proclamação da República. "Proclamação", aliás, é a palavra adequada, vez que a República, como se sabe, foi anunciada formalmente à Nação, porque resultante de golpe militar. Antônio Conselheiro teria sabido dela alguns anos depois. O movimento social e religioso que ele inspira – trucidado depois de quatro campanhas militares – se contrapunha ao casamento civil, aos censos e à introdução do sistema decimal. Como essas eram medidas propostas pelos republicanos, criou-se a lenda de que Canudos era um movimento "subversivo" que tinha por objetivo a restauração da monarquia. Afirmou-se, à época, ainda, que ele seria patrocinado pela Inglaterra. Na base dessas mentiras estava o temor dos latifundiários de que Canudos fosse uma experiência comunitária capaz de construir uma alternativa aos miseráveis do nordeste e, também, a inconformidade da Igreja Católica diante de um forte movimento social dirigido por liderança carismática cristã independente. O Exército foi, então, mobilizado para "salvar a República". Depois de terem amargado derrotas humilhantes diante de crentes subnutridos, as tropas da nascente República produziram um banho de sangue contra seu próprio povo. Os números são impressionantes e apontam para 20 mil mortos no arraial de Canudos, de um lado; 5 mil militares, de outro. Não foram feitos prisioneiros. Os que se entregaram ou que foram apanhados pelos militares foram degolados, inclusive mulheres e crianças.
Eram "fanáticos", dizia-se. "Jagunços", "ladrões", "arruaceiros", "pecadores", "vagabundos". Os que tomaram a decisão de seguir o Conselheiro, entretanto, nunca foram entrevistados pelas elites políticas ou econômicas, nunca foram ouvidos em seus reclamos, nunca foram esclarecidos ou educados. Povo que eram, foram largados no mundo para servir aos seus senhores e dar graças ao Deus que, lhes disseram, via na dor o destino dos humildes e o caminho para a redenção. Assim era, assim é. Essa gente, como se costuma ouvir por aí, "tem mais é que morrer mesmo". Pobre bom é pobre obediente, falta dizer.
Em tempo: dizem que entre os cogitados para o STF por Temer estão os nomes do atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e do atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho. Moraes, defensor do encarceramento em massa e das respostas repressivas, declarou, logo após sua posse no MJ, que o Brasil "gasta muito em pesquisa e pouco em armamento". Já Ives Gandra, membro da Opus Dei, defende a flexibilização das leis trabalhistas, entende que as mulheres devem ser submissas aos maridos e que casamento gay é "antinatural" assim como a bestialidade. O perfil de ambos é bastante "técnico", como se percebe.
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