Na madrugada de 26 de abril de 1986, ocorreu um dos mais graves desastres ecológicos de que se tem notícia. Explosões na Central Atômica de Chernobil, na atual Ucrânia, destruíram um dos reatores do complexo, lançando uma quantidade altíssima de radionuclídios na atmosfera. Setenta por cento desse material caiu sobre a Bielorússia. O pequeno país vizinho, com uma população predominantemente rural e onde não havia usinas nucleares, perdeu 478 de suas aldeias; 70 delas enterradas para sempre devido à contaminação nuclear. Atualmente, na região, uma em cada cinco pessoas vive em terras contaminadas. O número de doentes de câncer, pessoas com deficiência mental e mutações genéticas cresce a cada ano. Antes de Chernobil, havia 82 casos de câncer para cada 100 mil habitantes; hoje, há 6 mil casos; 74 vezes mais. Alguns dias após o acidente, a radiação havia atingido toda a Europa ocidental, a China, a Índia e os EUA. Os dados do Relatório da Escola de Radioecologia Sákharov são citados pela jornalista ucraniana, Nobel de Literatura, Svetlana Aleksiévitch em seu impactante "Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear" (Cia das Letras, 384 pág.).
O reator que explodiu foi parcialmente isolado dentro de um "sarcófago" montado com auxílio de robôs e helicópteros. Antes disso, muitos operários enviados pelo governo da ex-URSS morreram contaminados após cumprirem tarefas na área. Trinta anos depois, o reator segue ativo e lança aerossóis radioativos no ar. O sarcófago é um "defunto que respira", diz Svetlana. Uma nova construção capaz de isolar o reator por 100 anos será construída. O projeto, chamado "A Arca", terá 1.509 metros de altura, fundações colossais e 18 mil toneladas de aço de alta qualidade para resistir às radiações.
Logo quando ocorreu a tragédia, o mundo não foi informado da sua gravidade. Particularmente na ex-URSS e em todo o leste europeu, a população não foi sequer comunicada. Em Sófia, na Bulgária, o desfile de 1º de maio ocorreu normalmente, sob uma fina chuva. Os operários, camponeses e estudantes que empunhavam bandeiras vermelhas estranharam ao ver a Tribuna de Honra vazia na avenida central. Mais tarde, os motivos foram conhecidos. A chuva que caía sobre Sófia estava impregnada de resíduos radioativos de Chernobil. Os dirigentes do Partido Comunista Búlgaro não suspenderam o evento, porque isso exigiria relatar a tragédia ocorrida na "pátria-mãe do Socialismo". O episódio diz muito sobre o que foi o "Socialismo Real", algo que segue sendo pouco conhecido na América Latina. Ilustra, também, o quanto a ideologia pode se sobrepor à realidade.
Faz tempo, uma chuva tóxica cai sobre a esquerda brasileira. Seus componentes dizem respeito às limitações da matriz teórica marxista e à repetição de práticas e discursos blindados ao exame radical de seus pressupostos. Para que a esquerda renasça, será preciso que seus polos independente a reinventem. Por enquanto, a justificativa para a ausência do deslocamento crítico é oferecida pelo "Outro", pelo conveniente inimigo; aquele que coloca em risco as pretensões de poder. Há mesmo quem, diante da mediocridade e da agenda de retrocessos proposta pelo governo Temer, fale que vivemos em uma "ditadura". Curiosa síntese vinda de quem construiu alianças com a extrema direita e promoveu um ajuste fiscal que deixou intocados os interesses dos grandes empresários e do rentismo. Uma experiência que, como se não bastasse, agenciou sistemático assalto ao Erário, ao lado dos corsários de sempre. O balanço dos erros e o ajuste de contas com as pequenas e grandes vilanias cometidas em nome da "causa", entretanto, serão mais uma vez adiados. Agora, em nome da luta contra o "golpe". Os burocratas da Guerra Fria, seguidos pelos impávidos e pelos tontos, se unem para consagrar uma fórmula pela qual possam reviver seus dogmas. Ao invés de um novo pensamento, a compulsão pelo antigo discurso. "Repito, logo existo", eis a consigna da velha esquerda. Enquanto isso, os dirigentes dos sonhos destroçados, os membros do "comitê central do futuro ofuscante" – para lembrar um verso de Maiakovski – se perguntam quando embarcam para Curitiba.
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