Em maio de 2002, vivi um dos encontros mais surreais na minha longa jornada como jornalista. Por uma hora e meia, fiquei cara a cara com um enigma, o então presidente Hugo Chávez, em seu gabinete, no Palácio Miraflores, um mês depois de ele ter sofrido uma tentativa de golpe.
Oficialmente, eu integrava uma delegação de quatro editores internacionais que foram a Caracas no que parecia uma missão suicida: convencer Chávez a deixar de perseguir a imprensa venezuelana. Extraoficialmente, acabei improvisado como intérprete de Chávez, porque tamanha era a bagunça no Palácio Miraflores que não haviam encontrado quem pudesse verter a conversa para o inglês e vice-versa. Para não perder a viagem, me voluntariei, medindo as palavras e suando frio.
Poucos acreditam que o sucessor de Chávez, o só levemente menos amalucado Nicolás Maduro, entregará o governo pacificamente
De jaqueta e camiseta azul, sob o olhar de Simon Bolívar em quadros nas paredes de seu gabinete, Chávez era uma montanha-russa emocional. Ora tinha uma descarga de adrenalina, se inflamava e proclamava que sua “verdade era a verdade do povo”, ora se voltava para mim e perguntava: “Quer um café? Não? Um suco, então?”. E logo tornava a bradar que não tínhamos nada a fazer na Venezuela e que estava disposto a morrer pelo povo.
Antes que os decibéis da indignação de Chávez com nosso apelo pela imprensa se convertessem em nosso brim batido, agradecemos e batemos em retirada. Meu contato com o fundador do chavismo em pessoa tinha sido uma aula de bipolaridade. E minha convivência com o núcleo de seu governo, uma experiência esquizofrênica. Era coisa para psiquiatra, não para jornalista.
Pois neste domingo, mais de 22 anos depois daquela terça-feira de maio, a Venezuela vai levar às urnas a oportunidade de enterrar um regime que devastou as instituições democráticas e a economia, produzindo mais de 7 milhões de refugiados. Mesmo sem esses votos e as suspeitas de fraude, a oposição tem a melhor chance em décadas de dar adeus ao chavismo. O problema maior, porém, não é o domingo e a lisura da eleição, mas a segunda-feira. Poucos acreditam que o sucessor de Chávez, o só levemente menos amalucado Nicolás Maduro, entregará o governo pacificamente.
A posse do eleito é apenas em janeiro. O carrossel de emoções inaugurado por Chávez está longe de terminar, portanto, e colocará à prova o prestígio de Lula com o regime. Em junho de 2023, Lula disse numa entrevista à Rádio Gaúcha que a Venezuela tem mais eleições do que o Brasil e que o conceito de democracia é relativo. Esta semana, mudou de tom e, corretamente, exigiu que Maduro, que ameaça com um banho de sangue, acate o resultado eleitoral. O respeito às urnas também testará a reputação internacional de Lula.