Era uma vez um tempo em quem crianças brincavam na calçada, pais tranquilos conversando na sala ou na cozinha.
Era uma vez um tempo em que parentes se visitavam meio cerimoniosamente, e as crianças odiavam isso, a não ser que lá houvesse priminhos malandros dispostos a fazer alguma arte. Era uma vez um tempo em que ninguém falava em sexo, e as crianças quando deixavam de acreditar em cegonha diziam “graças a Deus somos só dois irmãos, meus pais só fizeram aquilo duas vezes...”
Era uma vez um tempo em que a gente acreditava em políticos, prefeitos, governadores, presidentes eram quase divindades. Certa vez um senador importantíssimo veio nos visitar, me pegou no colo e disse que eu tinha olhos lindos mas precisava cuidar porque ia ficar gordinha.... e chamava meu pai de Alemão, e insistia para que ele fosse assumir a direção de um banco no Rio de Janeiro... coisa tão remota para mim como o Himalaia. Acho que eu em tinha ouvido falar em Himalaia.
Era uma vez um tempo em que ninguém separava nem desquitava (não havia divórcio) ou era “casado no Uruguai”... e uma única coleguinha em toda a escola era filha de pais desquitados, portanto não eram casados “de verdade”, e a gente morria de pena dela.
Era uma vez um tempo em que não existia antibiótico. Quando tínhamos febre, a gente tomava uns comprimidos grandes, cor-de-rosa, compridos, chamados sulfadiazina, e o organismo se virava. Talvez assim tivéssemos mais anticorpos, seja o que isso for, e fôssemos mais resistentes. Eu de qualquer modo por uma bobagem tinha dores de garganta, febre alta, e morria de medo de médico (o nosso era amigo da família e bondoso até demais), porque a mãe ameaçava: “se correr na chuva, vai ter de ir no médico tomar uma injeção desse tamanho...”
Era uma vez um tempo em que namorar era complicado, transar neeeeem de longe, então os rapazes tinham uma namorada virgem e transavam com meninas mais liberadas ou iam na “zona”, palavra envergonhada, que nós, as virgenzinhas, mal ousávamos pronunciar.
Era uma vez um tempo em que a gente comprava no armazém e botava a conta no caderno do dono, comprava carne em açougue, tinha no fundo do pátio um forno de barro para assar pães maravilhosos, e a avó preparava geleias em tachos de cobre quando era época de goiaba, uva, até melancia. (Uma de minhas avós comia melancia com pedaços de queijo e pimenta... nunca tive coragem de experimentar.)
Era uma vez um tempo em que o Natal transformava o mundo. Ficávamos um pouco mais comportados (“olha a vara do Papai Noel!”) porque a educação tinha laivos de terrorismo, mas nenhum de nós ficou louco por causa disso. No dia 24 a sala ficava interditada. Adivinhávamos que os anjinhos, ou a mãe e a avó, estavam preparando o cenário da noite, árvore cheia de bolas e velas, o cheiro do pinheiro perfumando a casa.
Eram dias de desejos, presentes, carinhos, expectativas e, para as mais malandras como esta que escreve, um pouco de culpa e medo que logo se dissolviam em alegria e amor.