Alguém, muito gentil como são meus leitores através de tantos anos, me pergunta num encontro casual se concordo com a teoria de que tudo está predeterminado em nossa vida, que apenas seguimos feito manada em direção ao nosso destino. Claro que não!, eu disse. Espírito de manada é outra coisa, é o conforto de não decidir, mas acompanhar a maioria, sem refletir, sem reagir, portanto sem responsabilidade nenhuma (na nossa cabeça, claro).
Talvez seja meio a meio, respondi. Parte, sim, é determinada pela família em que nascemos, amorosa, fria e até violenta; pelas capacidades com que somos dotados geneticamente, mais bonito, mais tortinho, mais lúcido, mais sonhador, otimista ou sombrio, bom em matemática, bom em artes, ou nos dois, por que não? Corajoso ou tímido. Mil detalhes que constituem um ser humano, e que nem sempre podemos mudar.
Outra parte é o que nós escolhemos, e vai aqui de novo uma coluna sobre escolhas. Essa é a parte complicada, porque aceitar que podemos tomar decisões significa assumir alguma responsabilidade. Tão bom se os outros decidem e a gente apenas segue feito cordeiro para o sacrifício ou a festa. Mas, sim, temos escolhas. Posso tentar controlar um pouco, ao menos, o mau gênio, se nasci com ele. Posso ser mais humano, mais delicado, menos preconceituoso, mais gentil: olhar, abraçar, aplaudir, elogiar aqui e ali, partilhar de alguma risada ou divertimento, confortar nas horas duras, dar colo ou ombro, ou até um silêncio cúmplice e generoso. Isto é, ver algo além de mim.
Posso tentar caprichar mais na escola, no trabalho, ser menos relaxado ou desligado, ser mais interessado. Posso tentar ouvir boa música. Posso experimentar ler algum livro e sentir que minha cabeça se abre para o mundo, para os outros, até para mim mesmo. Posso tentar esporte ou contemplação. Enfim, posso ver a natureza pela janela de casa, numa trilha ou no ônibus e ver que ainda existe beleza. Posso várias coisas, nem todas difíceis.
Mas não posso tudo: esse é o drama. De verdade, existe o incontornável, o que não posso evitar: abandono de uma pessoa querida, desemprego, doença, morte, essas rasteiras que a vida nos passa. Posso não sair do limite da pobreza, embora lute feito um leão numa sociedade cruel. Mas posso ser mais amoroso. Posso ser melhor comigo mesmo. Posso refletir um pouco, ver saídas, descobrir jeitos, ou, se nada disso ocorrer, tentar não ser um sujeito brutal, desses meninos que se vangloriam: "Hoje saí a fim de matar alguém, então liquidei uma velhinha na frente da casa dela, um tiro, pum, e fim".
Mesmo nas piores situações, podemos escolher não matar uma velhinha indefesa no portão da casa dela. Podemos não magoar a pessoa que nos ama, não descuidar dos filhos que de nós dependem, podemos levantar o lixo do chão, podemos não nos matar de bebida ou droga. Podemos pedir ajuda e construir uma vida. Podemos também não poder, se o mal que nos fizeram – ou nos fizemos – foi grande demais: aí, quem sabe, algum anjo da guarda etéreo ou humano apareça para nos dar aquele empurrão positivo.
E, se nada disso acontecer, em vez de construir uma vida, podemos viver tecendo a nossa própria mortalha. Sempre podemos alguma coisa. Nisso reside a nossa dificuldade, e a nossa salvação: sermos apenas humanos.