Convidado pela Casa do Saber, do Rio, para participar de uma homenagem ao Moacyr Scliar, nos cinco anos da sua morte, e não querendo apenas falar do prazer e do privilégio de ter sido seu amigo, fui atrás de um texto do Saul Bellow que me lembrava de ter lido, sobre o judeu como inventor de parábolas didáticas, o que o Scliar fez sua vida inteira, disfarçando-as com a realidade e com a fantasia. Segundo Bellow, nas histórias da tradição judaica, o mundo e até o universo têm um sentido humano. A imaginação judaica já foi inclusive acusada de sobre-humanizar tudo, de supervalorizar o humano e atribuir a tudo significados demais. Para alguns, o próprio cristianismo seria uma criação de contadores de histórias judeus, festejando a vitória de cristãos oprimidos sobre os opressores, na sua origem.
Bellow conta que seu pai tinha sempre uma história pronta para qualquer questão, moral ou corriqueira. Todas as respostas começavam como uma história. "Havia um certo homem que morava....", "Uma viúva e sua filha...", "Um cavaleiro vinha por uma estrada na floresta...". A história que Bellow mais gostava era a do lenhador que saía de casa para juntar lenha na floresta e, na hora de voltar para casa, tinha juntado tanta lenha, que não conseguia levantar sua carga. Depois de praguejar contra a sua própria velhice e sua falta de força, o lenhador pedira a Deus que mandasse a morte buscá-lo, pois era um homem imprestável. E Deus apiedou-se do lenhador e mandou o Anjo da Morte para buscá-lo, e o lenhador pediu para o Anjo ajudá-lo a levar a lenha para casa e depois dispensou-o, dizendo que mudara de ideia e não queria mais morrer. O que provava, para o pai de Bellow, que ninguém está realmente pronto para morrer.
A parábola do lenhador, que Bellow lembra como exemplo de uma história tipicamente judaica, poderia ter sido inventada pelo Scliar. Nela há a tragédia da condição humana, da velhice, da revolta contra um destino irremediável, e o humor do desenlace, em que o Anjo da Morte é desviado da sua função e posto a trabalhar. Em toda a obra do Scliar, há essa mistura do trágico e do cômico, ou do trágico redimido pelo cômico. Em alguns casos, o humor judeu existe apenas para estabelecer uma ideia de equilíbrio e sanidade num mundo maluco. Mas quase sempre o humor judaico é misterioso e impossível de ser analisado, até por gente como Sigmund Freud, segundo Bellow. Alguém já argumentou que o riso, um senso cômico da vida, pode ser visto como prova da existência de Deus. A existência seria engraçada demais para não ter uma causa mais alta. O ateu Scliar responderia que a ideia de um deus piadista é que é muito engraçada.
Bellow diz que a experiência do gueto, da vida confinada, longe de produzir um sentimento claustrofóbico, abre a imaginação para o alto e para o mundo fora dos limites. Scliar é o produto de um gueto, o Bairro Bom Fim de Porto Alegre, em que nunca, que eu saiba, houve um pogrom. Se sua experiência fosse a de um gueto como o de Varsóvia, suas histórias seriam outras, ainda dentro da tradição judaica, e sua imaginação mais trágica e menos livre. Para nossa felicidade como leitores, o gueto que formou sua imaginação foi o de Porto Alegre. O mundo e o universo vistos de lá eram muito maiores e mais humanos, o Bom Fim literalmente não tinha fim.