Luis Fernando Verissimo

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Finalmente

O homem de Neandertal era evoluído demais. Tinha o cérebro tão acabado que não precisava da linguagem, mas sem a linguagem foi um fracasso social

Luis Fernando Verissimo

O homem de Neandertal tinha uma caixa craniana maior do que a nossa e, presumivelmente, um cérebro mais desenvolvido. Mas não falava. Usava instrumentos de pedra, dominava o fogo, enterrava seus mortos e vivia em comunidades como as nossas, talvez um pouco menos selvagens. Mas não tinha uma linguagem.

Só se comunicava com os outros com grunhidos e tapas no ouvido. Pela aparência, estava melhor preparado para dominar o planeta do que nós. Além do crânio enorme, tinha ombros maiores, mais músculos e ossos mais fortes. Mas, embora tivesse todo o equipamento necessário, não falava.

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Hoje especula-se que era o cérebro que o atrapalhava. A gestação da mulher de Neandertal durava mais tempo, o que significava que o cérebro já nascia pronto. E, em vez de ter a infância prolongada e protegida que literalmente faz a nossa cabeça, o guri de Neandertal recebia um tacape na saída do útero e já ia caçar. Sabe-se que o embrião humano reproduz, no ventre, toda a evolução da espécie, e que há um momento na gestação em que nosso cérebro fica tão completo quanto o do feto de Neandertal. Mas aí começa um processo de depuração, de eliminação de cédulas e modificação de circuitos, que continua no período pós-natal, e é esta adaptação que nos permite falar. Ou seja, a linguagem é o produto de uma carência programada do cérebro, e o poder da fala, uma compensação pelos neurônios perdidos. O homem de Neandertal era evoluído demais. Tinha o cérebro tão acabado que não precisava da linguagem, mas sem a linguagem foi um fracasso social. Não durou nem 80 mil anos, e com aqueles ombros.

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Aceitando-se a tese evolucionista, nós descendemos dos débeis mentais de Neandertal, dos que nasceram com o cérebro incompleto, dos fraquinhos que ficavam em casa só aprendendo besteira. Foi a linguagem que permitiu ao modelo seguinte dos pré-humanos se organizar, conceitualizar, trocar informações e mentir. Isso é, civilizar-se. Se você prefere a tese antievolucionista, ela diz que a Natureza sabe o que quer e seu objetivo era dar nome às coisas e uma retórica aos elementos, que antes da linguagem rugiam de frustração com a incapacidade de falar. Tudo na Natureza – os vulcões, os vendavais, os terremotos e os bichos – seria uma dificuldade de expressão.

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Tentando e errando (o homem de Neandertal, alguns políticos), tudo o que a Natureza quer é que falem por ela, que sejam o poeta que ela, por mais que se esforce, não consegue ser. Mas, segundo outra tese, malvada, a internet e seu vocabulário eletrônico teriam sido inventados para, finalmente, dar uma voz aos Neandertais.

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