Por trás do jogo de futebol, se você olhar além do campo e da bola, estará na tela da sua TV uma aula de história representada por cada um dos 22 jogadores de França e Marrocos. Colonizados e colonizadores, diferenças que ainda hoje persistem, passados alguns séculos, tensões e rearranjos sociais. Há muito de História, mas há também reflexos do ciclo migratório dos nossos tempos, de desfavorecidos palmilhando a Europa em busca de dias melhores. Os marroquinos chegam com 14 dos 26 jogadores nascidos fora do país. A França, com três, sendo dois deles de territórios ultramarinos do país. O maior contingente, no entanto, está nos descendentes dos imigrantes vindos das colônias. São 10, quase um time inteiro.
Comecemos pelo Marrocos. Pela localização, no final do caminho entre o Oriente e o Ocidente, o país de origem árabe desde o século VII, passou por mãos portuguesas, na costa Atlântica, chegou a ser compartilhado por Espanha e França até ser reconhecido pelo Reino Unido como território francês, no começo do século passado. A independência é recente, tem apenas 66 anos. A seleção atual representa muito da realidade marroquina. Eles são filhos da mão de obra europeia. Itália, Bélgica, Espanha e França, principalmente, são destinos de quem busca uma vida melhor do outro lado do Estreito de Gibraltar.
Marrocos é a seleção com maior número de "estrangeiros". Na verdade, eles têm apenas a certidão de onde vieram ao mundo. O coração, a cultura e a religião os conectaram com os antepassados e os trouxeram à Copa. Há um orgulho de representar o país que é deles por escolha. Bounou, o goleiro, fez questão de conceder entrevista em árabe depois da vitória sobre Portugal. Mesmo dominando o francês e o inglês, por ter nascido no Canadá, e o espanhol, por ser titular do Sevilla, onde foi eleito melhor goleiro da La Liga na última temporada.
A lista de "expatriados" tem um minimapa da Europa. Anass Zaroury, Bilal El Khannous, Ilias Chair e Selim Amallah são belgas. Ziyech, Mazraoui, Amrabat e Aboukhlal, holandeses. Hakimi e Munir, espanhóis. Aliás, Hakimi surgiu no Real Madrid, jogou por seleções de base da Espanha e renunciou. Estranhava o ambiente. O capitão Romain Saïss e o ágil ponta-esquerda Boufal são franceses, e o atacante reserva Cheddira, italiano. O próprio técnico, Walid Regragui, é francês, nascido no subúrbio de Paris. Gharib Anzim, um dos seus auxiliares, também é francês, nascido em Montbéliard. O treinador de goleiro, Omar Harrak, é espanhol e fez carreira toda em clubes da la Liga.
No lado francês, aparece a mão contrária da colonização. O que está longe de ser incomum. A seleção semifinalista de 1986 tinha o malinês Jean Tigana no meio-campo. O time campeão em 1998 era conduzido por um filhos de argelinos, Zidane, e liderada por um ganense, Desaylli. O que foi um marco nas sempre tensas relações dos franceses com os oriundos das periferias que engrossam a periferia das principais cidades do país. Nesta Copa, Steve Mandanda é congolês, colônia francesa. Varane e Coman vieram de Martinica e Guadalupe, dois territórios franceses do lado de cá do Atlântico.
O caso mais emblemático é o de Mbappé. A mãe é descendente de argelinos. O pai, de camaroneses. Passa por ele, principalmente, um possível tri mundial. Aliás, o grande número de filhos de imigrantes vindos das colônias é resultado de um projeto liderado pelo governo e mapeado pela Federação Francesa de Futebol. Em todos os bairros populares, a praça com a quadra de futebol no centro de tudo é onde surgem os atuais ídolos. E dali eles cumprem uma trajetória que começa nos times de bairro, onde são garimpados pelos grandes, como PSG, Olympique, Lyon e Bordeaux.
A lista é longa. Dembelé é filho de pai malinês e mãe da Mauritânia. Saliba e e Tchuaméni, têm origem camaronesa. Konaté, malinesa. Os pais de Upamecano vieram de Guiné-Bissau. Disasi e Kolo Muani têm antepassados do Congo. Os pais de Areola são das Filipinas, país com forte histórico de migração para a França. Koundé, aposta na lateral-direita e estrela do Barcelona, tem origem no Benin. Fofana, revelação do Monaco, marfinense. Há até um convocado que poderia estar do outro lado nessa decisão. Guendouzi tem antepassados marroquinos. Há ainda as histórias de Théo Hernandez, filho de espanhóis, e Griezmann, neto de portugueses e alemães e que começou a carreira na Espanha.
Enfim, como você pode ver, esse não é um jogo, mas um passeio pela geopolítica e pela nova sociedade europeia. Embora, haja resistência do lado de lá do oceano de entender isso.