Alexandre Bindé é daqueles jogadores com a tatuagem do Gauchão. Rodado pelo Interior, aos 37 anos o lateral virou uma das vozes de uma categoria que quase ninguém ouve. Ou simplesmente nem percebe nesses dias em que se discute a volta do futebol no topo da pirâmide, em que salários de seis dígitos são comuns.
Capitão do Lajeadense, ele faz parte de um grupo de WhatsApp de líderes dos times da Divisão de Acesso. O boato de que a competição poderia ser cancelada trouxe o medo para quem, no presente, busca meios de sobreviver.
Por telefone, conversei com Bindé. Confira a entrevista:
Como está a situação jogadores da Divisão de Acesso?
Com a suspensão dos contratos, todo mundo foi para casa. Os clubes foram obrigados a parar tudo. Recebemos março e , depois, veio a suspensão. Como não era possível prorrogar mais essa suspensão, entramos na redução da carga horária e dos salários, previstos na MP 936, em que é possível diminuir até 70%. O piso do jogador é de R$ 1,8 mil, mas estamos recebendo, em média, R$ 1,1 mil por mês. Os mais jovens, ainda sem contrato profissional, foram enquadrados na ajuda emergencial de R$ 600.
Como surgiu esse movimento dos jogadores?
Os capitães foram incluídos em um grupo criado pelo Sindicato dos Atletas lá no início da Divisão de Acesso. Estamos em contato todos os dias. Para você ter ideia, teve clube que ainda não enquadrou os mais jovens, sem contrato profissional, na ajuda emergencial. Tem que gente que está há três ou quatro meses sem nada de salário. Já é difícil receber com tudo normal... Ficou difícil. Tentamos nos fazer ouvir. A mobilização cresceu na semana passada, quando veio o boato de que a Divisão de Acesso e a Terceirona poderiam nem acontecer neste ano.
Qual seria o impacto caso essas competições fossem canceladas?
Já está difícil assim, se cancelar, o que será dessa rapaziada? A previsão seria voltar só em 2021. Hoje são quatro meses, e temos esse cenário terrível. Tem alguns pensando em deixar o futebol caso não tenhamos mais futebol em 2020. O cara vai entrar em outro segmento, porque precisa tocar a vida, e não vai querer mais retornar. Nem terá como. Entre nós, no grupo, estimamos que 80% dos atletas pararia. A Divisão de Acesso, a Copinha e a Terceirona já tem qualidade técnica inferior em relação ao Gauchão. Imagina depois de um ano com os atletas sem atividade. Isso se tiver campeonato e atleta para formar time. Foi por isso que levantamos a voz como capitães dos times. Ou falamos agora, ou corremos risco de não ter mais futebol no Interior.
Vocês já tentaram contato com a FGF?
Vamos tentar conversar com o presidente Luciano Hocsman. Parece que nós, jogadores, somos invisíveis. A FGF convida os clubes para conversar, e o atleta, como fica? Ele é o principal, sem atleta não tem futebol. Não estamos cobrando, a Federação sempre nos ajudou, é das melhores e mais organizadas do Brasil.
Os clubes teriam como bancar esses protocolos de saúde?
A FGF tem de ajudar não a nós, mas os clubes, para que consigam atender aos protocolos. Essa é a queixa dos dirigentes, de que não tem dinheiro para isso. Os clubes não têm dinheiro, por estão sem renda, sem torcida nos estádios, sem patrocínio. Não é culpa de ninguém, é bom que se diga. A pandemia pegou todos nós de surpresa. O que pedimos é ajuda para o futebol do Interior não morrer.
Você acredita que o cancelamento provocaria o fim do futebol do Acesso para baixo?
Eu acredito. Não digo que vai acabar totalmente, teremos os jovens, que com seus sonhos ainda buscariam espaço. Mas nós, os mais velhos, aqueles com mais e 27, 28 anos, teriam de buscar outras formas de sobevivência. Quase todos já tem mulher e filhos para sustentar.
Esse é um drama que atinge que percentual dos jogadores do Acesso e da Terceirona?
Calculamos que 70% estejam em situação bem ruim. Os 30% restantes são aqueles que conseguiram jogar fora do Brasil ou passaram por clubes grandes e, com a idade, vieram caindo. Esses ainda têm uma gordurinha. A realidade do Interior é dura. Dos 12 meses do ano, tu atuas em seis, sete. Nos outros cinco, remas. Tu tentas guardar um dinheiro para sobreviver nesse período sem clube. O final do ano é doloroso. Geralmente, os contratos vão até outubro. Daí, vem as festas de Natal, Ano-Novo, e se não conseguiu guardar algo, tem sofrimento. A diferença da realidade do Interior para os times grandes é abismal. Quem joga no Inteiror é assalariado.
Pelos relatos dos capitães no grupo, como os jogadores estão se virando?
Complicou tudo. Tentamos dialogar, ver a situação de cada um. Tem jogador no Uber, na construção civil, em que é possível trabalhar por dia, como servente de obras, tem um pessoal que está fazedo bolo, pão, pizza em casa, para vende. Há caso de gente trabalhando com limpeza ou como motoboy. Tu sempre inventa algo para ganhar um extra.
Nessas conversas, há relato de alguém com dificuldade de colocar a comida na mesa para a família?
Fome, tu não passas, sempre tem alguém que ajuda, alcança algo. Na última sexta-feira, a FGF enviou de 25 a 30 cestas para cada clube distribuir a quem estivesse em maior dificuldade. O Sindicato dos Atletas fez o mesmo em junho. Falamos pelos atletas, mas também pelos funcionários dos clubes, como massagista, roupeiro, cozinheira... O fato é que ninguém se sustenta com R$ 1 mil mensais.