Nesta semana, o futebol despontará em Porto Alegre no meio deste denso nevoeiro que nos engolfa desde que a pandemia bateu em nossa porta. Será luz em um cenário de incertezas, um facho de normalidade em dias que, por um bom tempo, nunca serão normais.
Inter e Grêmio voltam ao trabalho nesta segunda-feira, com funcionários e integrantes do departamento de futebol preparando o cenário para a reapresentação dos jogadores, no dia seguinte. Talvez seja um dos grandes testes da vida centenária dos dois clubes. Que, por ironia, estará amparado e será direcionado por pequenos testes, os da covid-19. É este o ponto central de toda a discussão em torno desta retomada do futebol.
A Dupla se equipou. O Grêmio buscou na Coreia do Sul 300 kits de testes. Eles virão no mesmo lote dos adquiridos pelo Flamengo. O clube gaúcho espera recebê-los nesta segunda-feira. O Inter já recebeu o seu lote, também de 300 kits, e está pronto para submeter os jogadores ao exame. O problema é que Grêmio e Inter não jogam sozinhos.
Precisarão, logo ali adiante sair de suas bolhas sanitárias — criadas por competência e méritos seus, é bom que se diga. Em junho, é muito provável, o Gauchão será retomado e confrontará a Dupla com uma realidade totalmente distinta à sua.
Esse abismo entre a Dupla e seus rivais no Gauchão está longe de ser novidade. A questão é que agora ele se cristaliza na forma de vida, ou melhor, de condições de preservá-la. A retomada do futebol exigirá investimento que passa longe da realidade áspera do Interior.
Há clubes que nem esperaram a quarentena para encerrar seus grupos. O Pelotas rescindiu com 20 atletas numa tacada só. O São Luiz, com 15. O Esportivo só seguiu porque os jogadores toparam receber 70% menos. Para muitos do grupo, os três meses extras de contrato, mesmo que recebendo o piso, garante, ao menos, a comida na mesa.
São mundos distantes, em que, às vezes, um reserva da Dupla recebe, por mês, o equivalente à folha inteira do adversário que vem a Porto Alegre. Em um cenário desses, R$ 10 mil para bancar testes é "água no deserto", como me disse um dirigente, para depois completar: "Não é que estou vendendo o almoço para comprar a janta. É que já comi até os pratos".
Por isso, a retomada do Gauchão me dá a sensação de que caminhamos em gelo fino. Simplesmente porque faltam condições para que os clubes do Interior banquem os custos exigidos pela segurança sanitária. A Federação Gaúcha de Futebol (FGF) já avisou que não tem condições de custear testes para todos os jogadores, comissões técnicas e funcionários mais próximos dos vestiários dos times.
Há ainda os árbitros e auxiliares, além de delegados e fiscais. Um lote de 10 mil kits foi oferecido à FGF por R$ 1,6 milhão. Por isso, a Federação adotará como procedimento uma pesquisa, em que pretende testar 20% dos atletas, para ter uma ideia do percentual de imunizados nesse universo do Gauchão.
Aqui cabe um paralelo com a Alemanha. Mesmo que tenhamos realidades financeiras distintas, a pandemia acaba por aproximar esses mundos. Pode-se dizer que, hoje, o Rio Grande do Sul está para o Brasil como os germânico estão para a Europa no que diz respeito ao enfrentamento do coronavírus — nossa curva, com algumas exceções, está bem monitorada.
Lá, os clubes da Bundesliga voltaram a treinar no dia 6 de abril, seguindo os protocolos de distanciamento. Passado quase um mês, eles ainda seguem trabalhando em pequenos grupos e com horários escalonados. O que deve mudar apenas a partir do meio da próxima semana, quando as autoridades sanitárias permitirão os trabalhos coletivos. A Bundesliga estima a sua retomada para a metade de maio.
Só que o paralelo com os alemães para aqui. A Bundesliga comprará 20 mil kits para os clubes da primeira e segunda divisões. A ideia é testar até durante os jogos, se necessário. Para você ter uma ideia, o Hoffenheim, nesta sexta-feira, começou a submeter os jogadores a exames de covid-19. Vai repeti-los na segunda-feira. São etapas a serem cumpridas antes de começar a trabalhar com todos os jogadores juntos. O mesmo se repete em outros clubes da duas principais divisões.
Mesmo com essa estrutura e com esse rigoroso protocolo sanitário, há resistências entre os alemães sobre a volta do futebol. O governo ainda decidirá sobre a voltado campeonato, e o assunto e pauta de debates no país. O consenso é de que bola rolando vai fazer bem para todos nesses dias de angústia pela pandemia. A dúvida é se vale a pena correr o risco. Talvez o futebol esteja passando, neste momento, pelo seu maior teste. Até mesmo na Alemanha, onde há teste para todo mundo.