Desde que o diagnóstico de câncer bateu à porta lá de casa, temos experimentado cenas alheias à rotina à qual estávamos acostumados. Da nova leva de cuidados, com medicamentos para aliviar a dor ao olhar atento para escapar dos raios solares, passando pelas dificuldades recentes para engolir um mísero comprimido: tudo passou a fazer parte dessa agenda que se impôs do dia pra noite. Quantas sessões de radioterapia já foram? Algum novo efeito colateral? Tem sido intenso e desafiador.
Minha amiga Andréia Preiss se adiantou para assegurar acalento espiritual; minha mãe, Lucia, não economiza seu talento gastronômico para produzir os mais saborosos cremes, já que é impossível engolir tamanha dor
Meu pai completou 65 anos em setembro e enfrenta um câncer recém descoberto na laringe. Nosso tratamento é liderado pelo Roger Federer da oncologia: André Fay. Obstinado pela cura, foi o Fay quem cuidou do meu amigo David Coimbra em cada passo da batalha contra a doença, incluindo o protocolo no Dana-Farber Cancer Institute, em Boston, nos Estados Unidos. Formavam uma bela dupla o David e o doutor André. Os dois, gremistas e obcecados pela vitória, se esmeraram para vencer o bicho. E penso que com sucesso. Tenho certeza de que David permaneceu conosco por mais 10 anos, a despeito de um câncer metastático, por conta dessa parceria espetacular.
A famosa crônica “Quando quis morrer”, uma das últimas do David nesta Zero Hora, lembra do esmero do Fay em encontrar o tratamento ideal “até nos finais de semana”. É nesse que o David diz que “a vida é boa” e cita gestos feitos por amigos para chegar à tal conclusão: o Potter que levou seu filho Bernardo ao show do Maroon 5, o Rafael que mandou um suculento churrasco para alegrar o dia, o Glauco que cozinhou “pratos deliciosos”. E é sobre isso que eu queria falar.
Das dores que nos acometem, sabemos todos, contudo o que seria de nós não fosse o afeto profundo de amigos e familiares? Minha amiga Andréia Preiss se adiantou para assegurar acalento espiritual; minha mãe, Lucia, não economiza seu talento gastronômico para produzir os mais saborosos cremes, já que é impossível engolir tamanha dor. Meu amigo Luís Felipe me olhou nos olhos, com a experiência de quem passou por isso, e se dispôs a conversar porque “sim, tu vais precisar conversar”. Nosso querido Fernandes, da Santa Casa, citou Bezerra de Menezes — e ganhou, ali, o coração do meu pai — para mostrar que tudo ia ficar bem.
São essas pequenas gentilezas que nos fazem ter a certeza, como disse o David, de que a vida é boa e que vamos passar por essa. Aliás, David, é preciso dizer que nessas horas tu fazes uma falta danada. Ainda assim, tua escrita chega, como um presente de amigo, e é capaz de nos abraçar.